segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Romance Policial e a Pesquisa em Psicanálise


Romance Policial e a Pesquisa em Psicanálise*. Assadi; T.C.; Bichara, M. A.; Dunker, C.I.L.; Gordon, J. e Ramirez, H.H.A.. Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade São Marcos, 1999.

 

Resumo

O presente artigo tem por objetivo estabelecer certas convergências entre a estrutura narrativa do romance policial e condições metodológicas da pesquisa em psicanálise. Procura-se com isso contribuir para a distinção entre a psicanálise como método de cura e como método de investigação ou pesquisa. A convergência entre ambos os campos já foi assinalada por inúmeros autores que apontam a contemporaneidade cultural dos dois discursos em questão. Diferenças substantivas igualmente já foram traçadas. Enfatizaremos os passos da investigação levando em conta o critério de verdade, a formulação de evidências, a construção de problemas e a teoria da prova envolvida em cada um dos discursos apresentados.
Palavras Chave: psicanálise, narrativa, literatura; Freud, Holmes.

Summary:
The following analysis establishes a convergence between the narrative structure of detective literature and the methodological conditions of research in psychoanalysis. It seeks to contribute to the distinction between psychoanalysis as a healing method with psychoanalysis as an investigation or research method. The convergence between both fields has already been identified by several authors aiming at the contemporary cultural aspects of the two fiels in question. Similarly, substantives differences have been outlined. Throughout this analysis, the investigative process is emphasized keeping in mind the criteria of truth, the formulation of evidence, the construction of hypotheses, and the theoretical proofs in each of the two narratives presented.
Key-words: Psychoanalysis, narrative, literature, Freud, Holmes.    

1.Introdução:

             Todos nós conhecemos os contextos: o primeiro, uma úmida e nebulosa tarde, com denso nevoeiro cinzento encobrindo as ruas de pedras; no seu interior a presença das mãos hábeis do criminoso. O segundo, uma escura e cosmopolita cidade encobre a hipocrisia e o anti-semitismo, no seu interior os sonhos intrincados de uma bela mulher.
Todos nós conhecemos os lugares: Londres, cerca de 1881, 1895, ou 1902, quando cavalos e cabriolés, lampiões à gás e as linhas telegráficas, paletó e corpete conviviam sossegadamente .Quando o metrô, não havia sido inventado, o telefone pouco usado e o automóvel quase desconhecido. Todos conhecemos Viena, cerca de 1856, 1895, ou 1908, a monarquia decadente de Francisco José era atravessada pela revolução industrial, com suas valsas, com seu romantismo, teatros, o famoso Danúbio Azul e uma grande crise sócio - econômica.
Todos nós conhecemos os personagens: um deles alto, magro, nariz  aquilino, com um andar felino e movimentos precisos. Sua silhueta é marcada pelo nariz, pelo chapéu de inverno e pelo seu cachimbo curvado. O violino ocasional E todos nós conhecemos uma das suas inesquecíveis expressões de tom irônico: " Meu nome é Sherlock Holmes. Meu trabalho é saber o que os outros não sabem". O outro personagem: barba, charuto empunhado, colecionador de antigüidades. O olhar penetrante, provocador, alvo de incansáveis críticas e desconfianças. É reconhecido como pesquisador dos segredos da natureza e do desenvolvimento humano. Adota, quase como um lema, outra irônica expressão: "Se não posso mover os céus me dirigirei aos infernos"
Sherlock Holmes é o célebre detetive, inventado por Arthur Conan Doyle, o mais simples e mais famoso personagem da literatura inglesa. Muitas vezes confundido com um ser real, habitando em carne e osso a vitoriana Baker Street. Sigmund Freud é o fundador da Psicanálise. Um grande e polêmico pesquisador, conhecido mundialmente. Para muitos mais um personagem do que um ser vivente. Confiante na razão científica inventa um modelo de funcionamento mental, revelando como um detetive da alma, o saber que não se sabe que sabe.
Esse esboço, onde personagens famosos estão mergulhados no mistério e na sua revelação, inter-relaciona o romance policial e psicanálise. Ambos são absolutamente contemporâneos. Freud lia as aventuras de Sherlock Holmes, como confidenciou a seu paciente, O Homem dos Lobos e Sherlock Holmes, foi posto por livros e filmes, no divã de Freud. Ambos se influenciaram e hoje, formam parte do mesmo imaginário.
Quando falamos nestes dois personagens, contemporâneos,  muitas semelhanças surgem imediatamente. Ambos estão imersos na atividade profissional da resolução de mistérios. Ambos realizam tal
tarefa utilizando princípios semelhantes: confiança na razão, atenção á importância dos pequenos detalhes, revelação do sentido oculto em aparências desconexas, justificação límpida e persuasiva de suas conclusões.
Ao final do século XX, podemos enumerar outros tantos detetives famosos que surgiram, tendo sempre como missão indagar e descobrir mistérios como também, foram surgindo os continuadores da obra freudiana, com a mesma missão, decifrar e indagar sobre a natureza da mente humana. Com o passar dos anos, a prática psicanalítica talvez tenha se afastado dos princípios freudianos, principalmente, quanto ao mistério que envolve cada sujeito.  Não acreditamos mais em uma única solução, inexorável e necessária para o drama subjetivo. A metáfora, usada por Freud (1937), de que se trataria de encontrar as peças e montar o quebra cabeças de nossas histórias de tal forma que todos os elementos se reúnam na figura da verdade parece ter perdido sua força. Assim como a confiança no aforisma de Holmes nos soa ingênua: "Quantas vezes eu disse a você que quando você tiver eliminado o impossível, o que quer que reste, por mais improvável que seja, deve ser a verdade”.(A Study in Scarlet,1938).
A subjetividade parece ter perdido sua espessura: nem profunda nem rasa, mas plástica, heteromórfica, mutante e transitória são seus atributos contemporâneos. A própria idéia de um enigma a decifrar perde força diante dos aparatos discursivos de desencantamento do mundo. Os saberes ordenadores e docilizadores do enigma e do mistério, que sempre caracterizaram a esfera da subjetividade moderna. A descoberta do enigma pressupõe paciência, interrogações constantes a valorização do que não se antecipa: o equívoco, o lapso, o sonho, o sintoma. Holmes e Freud são ícones de uma época em que o método se ligava indissociavelmente ao seu praticante. Onde o método não poderia ser facilmente traduzido numa técnica anônima, infinitamente capaz de reprodução e replicação. Ambos não descobriram apenas a singularidade do sujeito criminoso e do neurótico mas também do pesquisador que sob eles se detém.

2.    Os Princípios da Construção da Narrativa

Como observou Todorov (1980, p. 68) o romance policial é constituído pela relação problemática entre duas histórias: a história do crime, ausente, e a história da investigação, presente, cuja única justificativa está em nos fazer descobrir a primeira história. O romance se desenvolve na produção de tensões, conflitos, transformações e equilibrações realizadas entre a conjectura metanarrativa elaborada pelo leitor e a narrativa apresentada pelo texto. A leitura do romance, assim considerada, é uma espécie de jogo cujo objetivo é reconstituir, se possível antes do desenlace, qual a narrativa verdadeira. Temos, portanto dois detetives, o personagem (Holmes, Dupin, Poirot ou Marlowe) e o leitor que é convidado a confrontar sua versão. Tal versão deve ser de fato uma narrativa, isto é, não basta que ela localize o autor do crime, mas deve também integrá-lo numa rede que apresente os motivos, os meios, as circunstâncias e os acontecimentos de forma a produzir uma unidade lógica no conjunto. Os passos que organizam ambas as narrativas são mais ou menos conhecidos: (1) examinam-se as circunstâncias do acontecimento colhendo indutivamente indícios suspeitos, (2) indutivamente testa-se a consistência desses indícios de modo a transformá-los em pistas, (3) pondera-se o valor das pistas de modo dedutivo e procura-se a partir delas construir evidências, (4) conjectura-se uma reconstrução lógica das evidências de forma a desvendar o crime. (5)A partir disso a conjectura é apresentada à alguma forma de instância julgamento que avalia seu valor de verdade.
É uma regra constitutiva deste jogo que os signos e indícios apresentados ao longo da narrativa admitam, necessariamente, mais de um sentido e que eles se coloquem como possíveis soluções para uma fratura de sentido, em outras palavras para um problema. Um bom romance policial é capaz de, ao longo da trama, deslocar o problema originalmente proposto reconfigurando indícios e evidências. Tal reconfiguração passa, muitas vezes pela trama de contextos que se conjuga na narrativa: intenções amorosas, situações pendentes no passado obscuro, pactos por dinheiro ou poder, interesses políticos e segredos relacionais. Em outras palavras, um bom policial assim como uma boa pesquisa resignifica várias vezes os mesmos indícios ou conceitos formando com isso uma trama não completamente antecipável pelo leitor.
A boa narrativa de pesquisa é aquela que se coloca com passos a serem desvendados de forma pontual e precisa, que cria indagações e convida o leitor a interagir com seus enigmas.
É interessante como alguns estudiosos da estilística de Freud, e do seu método de construção de narrativas, nos forneçam indicações sobre como abordar seu texto que parecem valer também como conselhos para um leitor médio de romances policiais. Holt (apud Souza, 1999) faz as seguintes recomendações: (1) cuidado para não retirar as afirmações de seus contextos, (2) esteja alerta para inconsistências, (3) não confie na estabilidade das definições (4) adote um ceticismo benévolo e (5) tenha cautela com o poder de persuasão de Freud. A maior parte destas indicações nos informa que é preciso estar preparado para surpresas e reviravoltas. Além do mais desconfiar das evidências e asserções peremptórias sem ao mesmo tempo deixar de conferir crédito a tais movimentos ao longo do processo narrativo pode comprometer a verdade. 
      Ao tratar da intriga e do mistério Mezan (opus cit), mostra como ele é geralmente produzido a partir da regularidade no real e a necessidade de padrão. O crime é certamente uma descontinuidade na rede de suposições e expectativas que compõe a realidade, mas o que o torna interessante e dignos de investigação são os aspectos desta mesma realidade, antes irrelevantes, que se revalorizarão. São as marcas deixadas pelo assassino, as pequenas rotinas, os detalhes que não se encaixam. É, por outro lado, esta reinvenção do cotidiano, explorada por Freud na sua escolha de temas, que produz o efeito de que a solução estava aí presente e clara desde o início, nós é que não a captamos.
 Holmes, Freud, mas também Dupin, o detetive criado por E. A Poe, rege-se sempre pelo princípio de que o mais difícil de perceber é sempre o que está mais evidentemente mostrado. A busca de um problema intrincado, completamente inovador, como se este sim conferisse relevância à pesquisa, não deixa de conter uma certa ingenuidade e desconhecimento da força no simples, evidente e supostamente já sabido. A força desta estratégia de construção requer, em contrapartida, a atenção dirigida ao detalhe dissonante. O raciocínio clínico de Freud e Holmes não opera por exaustão, pela descrição completa, mas pela força do fragmento pela produção do elemento único e irredutível.
Outra faceta desta estratégia aparece na correlação explicitamente apontada por Freud entre sua estratégia de investigação e o método de Morreli desenvolvido para detectar falsificações em obras de arte. Morelli diz que os grandes traços característicos de um pintor ou de uma escola são muito mais facilmente imitados do que pequenos detalhes como a composição de uma mão ou o desenho da curvatura de um dedo. Na análise da escultura de Móisés, feita por Michelangello, Freud parte exatamente de uma injustificável tensão nas mãos de Moisés, para desenvolver uma narrativa do que teria acontecido naquele instante, segundo a imaginação de Michelangelo, para que esta tensão ali fosse figurada. Freud argumenta que a tensão das mãos torna-se compreensível se for associada ao momento em que Moisés pretende se levantar, irado pela adoração do bezerro de ouro, contendo sua violência e transferindo esta ilação de afeto para um imperceptível movimento de apego das mãos às escrituras.
Mas a idéia de que a investigação psicanalítica procede pela montagem de um quebra cabeças em analogia com a investigação ilustrada pelo romance policial tem também seus críticos. Spence (op. cit.) afirma que a idéia de uma solução inferencialmente única para o problema levantado deriva na verdade de dois movimentos de "aplainamento narrativo". Em outras palavras, o psicanalista seleciona fatos, supervaloriza evidências, descarta dissonâncias em dois níveis. Primeiro durante a sessão onde tem que eleger certos elementos em detrimento de outros e em segundo nível, na redação da pesquisa quando valoriza certos aspectos produzindo uma falsa unidade requerida por uma exposição persuasiva e sistemática. Para Spence levar a sério este ponto corresponde à admitir que a psicanálise é no fundo um gênero literário e que correlativamente ela deve abandonar suas pretensões de estabelecer-se como ciência que busca a investigação da verdade. A crítica de Spence destaca um aspecto irrefutável. Ao comprimir as mais de 800 páginas de notas que compõe o material clínico que serviu de base para a redação do caso clínico conhecido como Homem dos Ratos e, ao apresentá-lo sob forma de uma narrativa coerente, muitas escolhas podem ser argumentadas como injustificáveis.
Mas, como observa Mezan, (op. cit) a mestria da composição freudiana reside justamente nisso. O aplainamento narrativo, no sentido crítico pejorativo, empregado por Spence, certamente não permite que olhemos para a análise de um caso como o espelho dos fatos linearmente ajustados sob forma da única explicação possível.
 A metáfora da investigação policial pode ser traiçoeira se isso significar apenas a introdução da ordem onde antes governava o caos, o restabelecimento do equilíbrio perdido. É preciso ter em mente que este movimento se companha, tanto no romance quanto na pesquisa em psicanálise, do movimento inverso de introdução da desordem, onde antes reinava a continuidade estável do real. A produção da surpresa e do enigma onde antes havia a trivialidade do já sabido.
Spence se fixa em demasia no primeiro movimento, por exemplo, quando afirma: "Apresenta-se um detetive (terapeuta) que se vê diante de uma série de acontecimentos estranhos e desconexos (sintomas) relatados por um cliente algo desesperado e desorganizado (paciente)”. (Spence, 1992, p. 138). Poderíamos refazer a frase de Spence, invertendo os sinais, e mesmo assim ela permaneceria válida para o contexto da pesquisa em psicanálise: "Apresenta-se um detetive (terapeuta) que se vê diante de uma série de acontecimentos banais e coerentes (sintomas) relatados por um cliente algo tranqüilo e organizado". Ocorre que como o problema não é dado como um fato da natureza e sim construído pelo detetive a banalidade ou trivialidade é apenas uma parte da história sobre a qual se engendrará uma segunda narrativa.
 Sherlock Holmes, na investigação do caso conhecido como "Estrela de Prata", nos auxilia novamente na compreensão desta questão. Trata-se do desaparecimento de um cavalo de corrida e do assassinato de seu treinador ocorrido durante a noite que antecede a grande corrida. O cuidador do animal talvez tivesse sido dopado, uma sugestiva caixa de fósforos foi encontrada no local e sinais de luta no corpo da vítima. Uma série de pequenos indícios acusa a presença de um outro na cena do crime. Várias coisas fora do lugar compõem o quebra cabeças a ser reconstruído. No entanto, a solução não passa apenas pelo mero recolhimento destas pistas, mas também pela produção e constatação do que permanece, aparentemente, o mesmo. Eis um exemplo do que se diz por este diálogo chave: "É preciso entender o problema representado pelo cão - diz Holmes. Mas qual problema? Ele permaneceu dormindo como sempre - retruca Watson. É justamente esse o problema, meu caro Watson”. De fato o acontecimento crucial representado pela ausência de latidos do cão conduz à idéia de que foi o próprio treinador quem retirou o cavalo a partir do que o caso se resolve pela inclusão dos demais detalhes.
A função de Watson é um elemento clássico do romance policial. Ele ocupa o lugar estruturalmente necessário do personagem que se engana. Não da mesma maneira que a polícia que se engana pela impossibilidade em isolar as diferenças que fazem diferença, que tudo olha, mas nada vê, que trabalha pela exaustão e opera com um roteiro que universaliza as ações desconhecendo a singularidade do criminoso. Watson e Hastings, os fiéis companheiros de Hercules Poirot são personagens de mediação entre o leitor e o detetive. Eles representam o senso comum atraindo para si uma identificação do leitor. É com eles que o detetive argumenta, se justifica e presta contas de suas ações. Corresponde a figura tantas vezes utilizada por Freud do "interlocutor imparcial" ou presente pela interpolação, no texto, de expressões tais como: "Sei que será difícil ao leitor me acompanhar neste ponto, mas..." ou  ainda "Peço compreensão ao leitor mas também quando o paciente relatou-me isso pela primeira vez não pude entender ... ". Essa dissociação do autor do texto em vozes dissonantes e dialogantes, presentes na narrativa, aparece ainda no extenso uso da ironia como recurso retórico caraterístico do romance policial.
Freud, habitualmente fazia interlocução com Fliess. É necessário um outro para a construção do método clínico. Na pesquisa psicanalítica o interlocutor aparece muitas vezes como sendo o próprio texto, o orientador ou mesmo o leitor.
 A Função-Watson é relevante para avançarmos para um outro problema da pesquisa psicanalítica, especialmente quando esta se desenvolve no âmbito da universidade. De que lugar fala o pesquisador em seu texto? Certamente não é o de analista, mas o de testemunha de uma experiência elaborada. Surge aqui uma importante diferença entre a psicanálise enquanto método de cura e a psicanálise enquanto método de pesquisa ou ainda como campo de doutrinas e saberes articulados sobre o inconsciente. Freud oferecia esta tripla definição da psicanálise, mas não desenvolveu inteiramente quais seriam suas consequências. Admitindo-se a proximidade entre a narrativa policial e a pesquisa psicanalítica pode-se postular que o lugar de onde se escreve uma pesquisa psicanalítica é muito semelhante ao ocupado por Watson, ou seja, o de compartilhar a experiência da investigação. É ele quem narra as memórias de Holmes, são para ele que os argumentos e justificativas são expostos e sem ele o efeito de surpresa se transformaria numa tediosa exposição dedutiva, perdendo muito de sua plausibilidade e da estrutura, essencial, de diálogo.

3.    Investigação Freudiana e o Problema do Desenvolvimento

Vejamos então algumas implicações deste modo de compreender a investigação freudiana, para o tema do desenvolvimento. Em primeiro lugar isso traz à consideração de que utilizar a teoria freudiana como uma teoria do desenvolvimento infantil exige muitas concessões a ambos os termos envolvidos. O desenvolvimento, entendido como uma série de etapas em sucessão linear articulada por conexões causais, orientado por uma teleologia que culminaria na chamada organização genital constituiu um forte ponto de apoio para tradições pós-freudianas. Deste modo o substrato maturacional, tornar-se-ia o ponto fixo, biológico e universal, que conferiria à psicanálise uma sólida base epistemológica para enfrentar as objeções contra sua cientificidade. Ocorre que neste movimento o objeto de investigação do psicanalista desloca-se do campo da narratividade para o campo da descrição. O sujeito da narrativa, um personagem concreto e singular é absorvido a uma abstração universal: a criança, o bebê, o infantil. Passa-se da sobredeterminação à determinação. A psicanálise recai em psicologia. Produz-se assim uma chave de valor meta-narrativo, que não produz mais surpresa ou resignificação. A teoria assim constituída condena a singularidade da experiência ao ajustamento fazendo da interpretação mera tradução da narrativa singular a esta meta narrativa universal. A diferença entre o organismo e o corpo é que este último, para a psicanálise, é um corpo-narrativo, um corpo falado e falante. O organismo por sua vez é mudo, destituído de significação, é apenas um fato de sentido.
Em função deste pressuposto podemos entender a dimensão absolutamente ficcional pela qual Freud aborda o desenvolvimento. Por exemplo, para explicar a universalidade do complexo edipiano e da experiência de angústia que está no seu centro, Freud recorre a uma narrativa das origens da civilização. Isto é explica a regularidade das narrativas singulares postulando uma narrativa na qual estas se incluem e é, por assim dizer, seu prolongamento. A narrativa interminável da cultura. Ora, Totem e Tabu é uma narrativa apoiada em inúmeros dados antropológicos do início do século. Dados que encontram sérias objeções atualmente, mas também na época em que Freud estava vivo. Se as objeções antropológicas a Totem e Tabu são pertinentes, e tudo indica que são, sua utilidade para a psicanálise deveria ser descartada. Mas tal não ocorre, justamente porque o teor narrativo e ficcional de Totem e Tabu continua atual para a compreensão da narrativa singular de neuróticos contemporâneos.
A história da psicanálise sempre se perguntou porque os “dados” oriundos das pesquisas mais duras sobre o desenvolvimento, no sentido maturacional, não pareciam tocar ou perturbar as teses psicanalíticas. Ocorre que tais dados, para constituírem utilidade para a psicanálise implicam numa leitura que os transforma em bloco ou soluções narrativas. É o caso, por exemplo, do estádio do espelho, postulado por Lacan que é apresentado como um “um drama da insuficiência”. Apesar de amplamente baseado em “dados” da etologia da década de 30 o que conta não são o seu teor de dado enquanto reflexo de uma determinada realidade empírica, mas o drama que ele permite entrever. O mesmo pode se aplicar á descoberta do objeto transicional por Winnicott, que enquanto dado objetivo, é infinitamente pobre perto dos fenômenos narrativos de transicionalidade que este permite pensar. Igual argumento se poderia levantar para o uso dado por M. Klein a certos acontecimentos da vida precoce do bebê. O que os tornou psicanaliticamente úteis é a narrativa, algo fantástica, que ela utiliza para articulá-los.
Os dados colhidos da psicologia do desenvolvimento no seu sentido mais estrito são comparáveis ao trabalho que a polícia técnica tem para a solução de um caso policial. Eles apenas conferem solidez e persuasão a alguns indícios, mas que, destacados da trama, são inúteis e impostos por si mesmos como uma trama, mostrando-se particularmente pobres.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
APPIGNASE, R. and Zarate, O. - Freud for beginners, Icon Book,    Cambridge, Great Britian, 1992.
DOYLE, A. C. - Memórias de Sherlock Holmes ,L&PM Pocket, vol.166,
Porto Alegre, 1999.
GAY, P. - Freud - Uma vida para o nosso tempo, Companhia das Letras, São Paulo, 8ª impressão,1997.
GOLDGRUB, F. - Freud, Marlowe & Cia, Educ - editora da Puc- SP, Nova Alexandria, São Paulo, 1994.
LIPARI, P. - The Baker Street companion, Ariel Books, Kansas City, USA, 1996.
MEZAN, R. - Escrever a clínica, Casa do Psicólogo, São Paulo, 1998.
SPENCE, Donald P. A metáfora Freudiana: uma mudança paradigmática na psicanálise. Trad. Júlio Guimarães. Rio de Janeiro, Imago, 1992.



  1. Tatiana Carvalho Assadi; psicanalista; Mestre em psicologia pela Universidade São Marcos; pesquisadora do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da Unicamp. Tel. (11) 4794.3535 tatiassadi@uol.com.br
  2. Maria Auxiliadora M. Bichara; assistente social; Mestre em psicologia pela Universidade São Marcos. Tel. (11) 5054.0321 bichara@osite.com.br
  3. Christian Ingo Lenz Dunker; psicanalista; Doutor em Psicologia pela Universidade São Paulo; Prof. Dr. Do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade São Marcos; Tel. (11) 3887 3037; chrisdunker@uol.com.br
  4. Joëlle Gordon; psicanalista; Mestre em psicologia pela Universidade São Marcos; Tel. (11) 289 2163; jgordon@uol.com.br
  5. Heloísa Helena Aragão e Ramirez; psicanalista; Mestranda em psicologia pela Universidade São Marcos; Tel.(11) 5539 6266; heloramirez@bol.com.br






·        Artigo apresentado em comunicação oral no Congresso Internacional do Desenvolvimento Humano – Abordagens Histórico-Culturais. – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Diretoria de Relações Internacionais da Universidade São Marcos, com o trabalho: Freud: Pesquisador do Desenvolvimento Humano” em co-autoria com o Núcleo Família e Psicanálise. – setembro/1999.

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