segunda-feira, 6 de junho de 2011

A FANTASIA ENCARNADA: um estudo sobre o fenômeno psicossomático.

A FANTASIA ENCARNADA: um estudo sobre o fenômeno psicossomático. Heloísa Helena Aragão e Ramirez & Christian Ingo Lenz Dunker. UNIMARCO/UNIFESP (Dra. Valéria Petri). São Paulo. Brasil.

“É sempre no encontro com a palavra que o homem pensa. E é no encontro dessas palavras com o seu corpo que alguma coisa se esboça”.
Lacan, J. 1975.

Este trabalho é resultado dos primeiros atendimentos aos pacientes com vitiligo , no Instituto da Pele em São Paulo, a partir da implantação do Projeto “Aspectos Psicológicos do paciente com vitiligo e psoríase” cuja formatação prevê a elaboração de consultas compartilhadas e entrevistas para avaliação clínica das situações individuais do paciente. Como resultado inicial desse procedimento, obtivemos uma série de dados interessantes, até mesmo os quantitativos, que nos aproximou de alguns aspectos dinâmicos da doença, como por exemplo: dos 65 pacientes que passaram pelas primeiras entrevistas, em 46% deles o vitiligo desencadeou-se na idade entre zero e dez anos, ou seja, aproximadamente 30 eram crianças quando apareceram as primeiras manchas de vitiligo; outros 18 eram adolescentes com idades entre 11 e 20 anos (27%). Somando-se os dois índices temos que em 64% da população atendida em 2004 pela equipe de psicólogos no Instituto da Pele, o vitiligo se manifestou antes dos 20 anos de idade, um número significativo, que surpreendeu num primeiro instante, mas que foi de encontro aos indicados nos compêndios da literatura médica.

Outra constante clínica que apareceu durante as entrevistas realizadas refere-se às condições atuantes no desencadeamento da doença que nos mostrou uma afinidade direta com perdas ou cortes. Estas situações  que comumente se referiam à morte de alguém muito próximo afetivamente; ou a uma perda financeira; ou a uma mudança inevitável de hábitos culturais, como a migração de um estado para outro; ou ainda a algum episódio de traição, entre outros  eram tidas como traumática pelo paciente, que as relatavam como uma espécie de causa emocional diretamente associada ao desencadeamento do vitiligo. Neste ponto, há que se considerar a observação de Jean Guir sobre os fenômenos psicossomáticos no que diz respeito ao surgimento, mobilizações e desaparecimento destes em função de um acontecimento exato e datas específicas, sendo capazes de uma indução ou causalidade significante. Esses doentes referem-se a si próprios, com muita freqüência, como pessoas nervosas, ansiosas ou ainda estressadas, que diante de um acontecimento inesperado não sabem como lidar com os seus sentimentos.

Também foi possível estabelecer várias aproximações entre o que é próprio do vitiligo e comum ao que aparece no fenômeno psicossomático, como por exemplo, o movimento de alternância entre o aparecimento e o desaparecimento da lesão, diante daquilo que os pacientes costumam se referir como o “abrir e fechar” do vitiligo, como se fosse um surto evolutivo da doença. Além disso, constatamos que algumas pessoas readquirem naturalmente a capacidade de re-pigmentar a pele e as manchas brancas desaparecem, e outras, ao contrário, nunca retomam essa capacidade, e parece que não há para isso, do ponto de vista médico, qualquer explicação científica.

Outro aspecto que vale a pena mencionar é que nos deparamos com pacientes crentes e outros absolutamente céticos em relação ao tratamento e à estabilidade da doença. Alguns só buscaram tratamento 15, 20 e até 30 anos depois do início da enfermidade porque ouviram dizer que o vitiligo não tem cura. Outros, ao contrário, além da medicina recorrem a toda sorte de práticas alternativas, na esperança de se livrarem das incômodas manchas que assolam o seu corpo.
Um dos princípios norteadores da psicanálise é de que o corpo humano é sensível ao dizer, e com isso carrega consigo uma imensa capacidade subjetiva e que por ser subjetiva implica o Outro (do desejo). É esta ligação que permite que se estabeleça uma relação entre aquilo que acomete o corpo e a subjetividade, por isso, o sintoma neurótico é sensível à palavra e pode ser remetido pela interpretação em análise. Isto é diferente do fenômeno psicossomático que implica em uma lesão, e, se ela for reversível isto não se dá instantaneamente já que se trata de algo que está encarnado e concerne ao real.

O caso clínico da jovem Cristiane, marcada na pele pelo vitiligo, foi sem dúvida importante para pensar a lesão como pertencendo à ordem de fenômeno psicossomático, ao levar-se em conta o dano histológico do órgão, no entanto, as discussões realizadas nesse primeiro tempo do Projeto foram promissoras quando se analisou que nem todo vitiligo se apresentava, subjetivamente falando, como um fenômeno psicossomático. Vale ressaltar que se trata aqui de clínica e de psicanálise, portanto, do singular de cada caso. O que insiste para além do sujeito, no particular do vitiligo se apresenta pela via do sintoma ou do fenômeno psicossomático.


Caso clínico

Cristiane, 15 anos, acompanhada de sua mãe, chegou ao ambulatório do Hospital para iniciar o tratamento de um vitiligo segmentar - que se caracteriza pela disposição topográfica das lesões em um só lado do corpo – e que, no seu caso, tomava praticamente metade de seu rosto e pescoço seguindo seu curso da áxila até os artelhos, unicamente do lado direito do corpo. A doença teve início aos dois anos e meio de idade e nenhum tratamento anterior trouxe resultados relevantes. Sobre o tratamento médico do vitiligo sabe-se que existem diversas formas de cuidados mais ou menos demorados, que levam, por vezes, a excelentes resultados. Além disto, como a doença se apresenta de forma e intensidade variada, cada paciente deve receber orientação individualizada, de acordo com seu caso. Assinala-se, ainda, que o êxito ou não dos resultados dependem, muito, da adesão do paciente ao tratamento e da sua relação com o mesmo. Sobre o histórico da paciente, sua mãe explicou que as primeiras manchas apareceram seis meses após sua separação do marido e indicou este fato como o acontecimento causa do desencadeamento do vitiligo e como uma explicação psíquica natural para a doença.

Durante as entrevistas preliminares, Cristiane preferiu responder as perguntas que lhe foram dirigidas sem grande implicação ou interesse, falando muito pouco sobre ela mesma. Abro aqui um parêntesis para dizer da grande dificuldade que os pacientes tidos como psicossomáticos têm para estabelecer a transferência em análise. No caso de Cristiane não foi diferente. Dizia que só estava fazendo terapia e o tratamento médico para satisfazer a vontade de sua mãe, já se acostumara ao vitiligo. Somente com o tempo e muito devagar é que foi possível iniciar-se uma tímida construção de sua história, viés pelo qual a analista apostou poder começar a encetar o laço transferencial.

Cristiane morava com a mãe e o padrasto desde os quatro anos de idade e o considerava seu verdadeiro pai , a ponto de acreditar que ele tinha por ela uma consideração especial tal qual uma filha predileta. Este homem, casado com sua mãe, teve com ela um filho, menino, que na época contava seis anos de idade, e que ela se referia como sendo seu meio irmão. Havia também uma meia irmã, filha mais velha de sua mãe, com outro parceiro. Cristiane, na linhagem materna, é a filha do meio. Considera-se a mais querida, está sempre ao lado da mãe e respondendo à sua demanda como uma boa filha, procurando fazer tudo o que ela lhe pedia prontamente e sem reclamações. A relação com o pai sempre foi muito complicada. Disse-me que dele pouco sabia, mas que também não queria saber mais. Sabia apenas que ele lhe devia muitos meses de pensão e que por isso estava proibido de sair do Brasil, mesmo assim ele fugido para a Ásia usando uma identidade falsa. Antes, porém, aqui mesmo no Brasil ele teve mais dois filhos com outra mulher, uma menina e um menino, que também são considerados seus meios irmãos. Deste pai, quer queira quer não, Cristiane carrega um legado bastante visível que é seu tipo físico: o olho oblíquo, os cabelos lisos e pretos e a estatura elevada. Herança genética que marca sua metade oriental.

A possibilidade de construção de sua história permitiu que Cristiane se recordasse de duas cenas de quando ainda era bem pequena. A primeira foi uma briga que aconteceu quando os três juntos, ela o pai e a mãe foram conhecer o apartamento novo que ele havia comprado para que os três morassem juntos. Cristiane brincava na sala vazia, correndo de um para outro lado enquanto os dois, no quarto, tiveram uma briga horrível. O motivo da briga ela nunca soube, apenas que depois disto seus pais nunca mais se entenderam e a separação foi inevitável e definitiva. Interessante notar que sobre esta cena contada na experiência analítica pairou uma dúvida, Cristiane não conseguia saber se aquilo que lhe vinha à lembrança fora, simplesmente, um sonho ou, de fato, um acontecimento. Precisou convocar à mãe e por à prova a verdade. Saber que de fato tudo acontecera a tranqüilizou.

Cristiane contou que a mãe só se separou do seu pai porque ele era muito ignorante cuja tradução é estúpido, agressivo. A segunda lembrança que ela tem, também do pai, foi a de uma visita que ele lhe fez em cuja ocasião ele lhe presenteou com um ursinho de pelúcia. Uma cena de afeto que, no entanto, ela teima em derrogar dizendo à analista que enquanto o pai tinha a esperança de se reconciliar com a mãe ele a visitava e lhe levava presente, mas quando percebeu que ela não queria mais nada com ele, nunca mais apareceu. Um parêntesis: Sua mãe contou à analista que Cristiane nunca gostou de estar com o pai, desde muito pequena, quando ele a pegava no colo ela o rechaçava, afastando-o com as mãos e chorando. Acredita que a filha não poderia saber por que era pequena, mas que ela devia sentir o quanto o pai era ignorante.

Sobre o vitiligo, nenhuma palavra, Cristiane dizia que ele não a incomodava, já estava acostumada, só se magoava e chorava quando era alvo de apelidos, como na escola quando os garotos a chamavam de traquinas meio-a-meio, cara-metade ou manchada. Os seus apelidos, conseqüência de sua doença, foram explicados pela característica das cores e traquinas meio-a-meio como a bolacha: uma carinha marrom e creme. Ela sabia que os meninos quando se reuniam olhavam-na, rindo e falando dela e refere-se a eles dizendo que tem muitos garotos ignorantes na escola. Ignorantes como o seu pai?

Foi na série: meio-oriental-meio-ocidental (traços do pai e traços da mãe); cara-metade; filha-do-meio; meio-irmã; e traquinas-meio-a-meio, que a analista se deteve na expectativa encontrar o traço de fixação do fenômeno psicossomático em meio-corpo (vitiligo segmentar). Meio-a-meio tinha característica de um significante encarnado pela fixidez imaginária, num gozar fora do corpo e que tomava a forma de um vitiligo. Havia também o fato de que algumas destas expressões: traquinas meio-a-meio; cara-metade ou manchada possuir um estatuto lingüístico comum: eram formas do nome, alcunhas, substituições ao nome próprio do sujeito. Formas de nomeação que corrompem a qualidade essencial do nome próprio, ou seja, a de designar sem significar e estão, portanto, sujeitas ao processo de tradução e sinonímia. Mais do que isso, tem a função de representar no enunciado o destinatário de uma enunciação, um shifter ao qual o sujeito está submetido a partir da interpelação do Outro. Segundo Guir, “parece que há no fenômeno psicossomático uma degradação, uma dessacralização, um rebaixamento do nome próprio a uma leitura comum que desmascara o sujeito” .

Poder-se-ia argumentar aqui que a nomeação em questão (meio-a-meio) é secundária ao próprio vitiligo e que se deveria procurar por algo similar na esfera da própria constituição da formação psicossomática, diferenciando-o dos seus efeitos sobre o narcisismo. Conforme Lacan a letra inscreve um gozo específico que não se dá a ler, assim, “a lesão psicossomática é a letra marcando-se no organismo”, e que se explica por ser uma posição do sujeito ao Outro que não se decifra, diferentemente do sintoma analítico. Guir, 1990, nos apresenta o paciente psicossomático como buscando traços de identificação com o pai, uma vez que ele tem dificuldade de acesso ao traço-Unário. Nesta medida, a lesão psicossomática funciona como este traço, como um “significante, não de uma presença, mas de uma ausência apagada” , uma marca que passa necessariamente pelo ponto de apagamento, marcando a diferença, onde “o corpo se deixa escrever alguma coisa que é da ordem do número” , uma vez que o que falha é justamente a função de pai, ou seja, a função de zero, por onde se introduz a via pela qual o sujeito passa a se contar, inaugurando assim sua unicidade significante.

A gente sabe quando estão falando da gente esta oração, pinçada do discurso de Cristiane exemplifica a forma como ela se coloca no discurso. Gente, ao mesmo tempo em que inclui, pode também excluir o sujeito, tornando-o evanescente. Ainda: no começo levava presentes ou tinha comprado um apartamento pros três morar, percebe-se aí um problema na localização subjetiva desta paciente, onde o sujeito não aparece e encontra-se eclipsado, principalmente quando o discurso se refere ao pai.

Retomando a teoria, na fundamentação do fenômeno psicossomático é que ocorre uma incidência do significante sobre o corpo em virtude de um fracasso da função do Nome-do-Pai, um holofraseamento, permitindo que se estruture alguma coisa que é da ordem da letra. S1 cola em S2, sem o intervalo que possibilita a divisão do sujeito. Como não existe intervalo, não existe também objeto perdido, estilhaços pulsionais. O sujeito é compactado ao objeto. É como se todo o narcisismo se concentrasse nessa “marca que é antes de tudo uma assinatura”. Isto não significa que o sujeito não seja representado por um significante, o que ocorre no fenômeno psicossomático é que o sujeito é representado por um significante, mas não para outro significante. Além disso, Lacan fala em auto-erotismo sem relação de objeto, e precisa, “que a indução significante, no nível do sujeito se passa de um modo que não coloca em jogo a afânise”, referindo-se a uma espécie de bloqueio, “de congelamento do significante no corpo, um curto circuito que será responsável pelas manifestações corporais”.

Não existe sujeito psicossomático, isto quer dizer que não há estrutura psicossomática como não há privilégio de uma ou outra estrutura quando se trata de fenômeno psicossomático ele está ao lado da estrutura, ou seja, pode comparecer tanto na neurose, quanto na psicose quanto na perversão. O holofraseamento de que se trata aqui não tem a mesma configuração daquele da psicose em que o sujeito não pode responder ao retorno no Real de um significante foracluído. Nasio fala em foraclusão parcial, ou melhor, em foraclusão local do Nome-do-Pai e Guir diz que para ele o significante S1 não é nem foracluído, pois não se trata de psicose, e nem recalcado, simplesmente à metáfora não funciona, porque não faz o corte entre S1 e S2 para que haja emergência do objeto a.

Uma alternativa possível para dirigir o tratamento seria transformar aquilo que é fenômeno em sintoma, deslocando o que faz assinatura para o que é da ordem do signo e aí então contar com a possibilidade de poder fazer uma leitura. Neste caso, o que permitiu Cristiane deslocar aquilo que era da ordem do gozo no corpo para a palavra foi à insistência da analista em separar traquinas-meio-a-meio, o quê deu ocasião para pontuações que se abriram para as questões sexuais (via possível para o descongelamento do significante compactado). Ao associar traquinas-meio-a-meio, agora, a uma bolacha de dois sabores, chocolate e creme, Cristiane passa da cor ao sabor, fazendo emergir fantasias que não pertenciam mais unicamente ao corpo, mas ao próprio sujeito. Traquinas, traquinagem, brincadeiras safadas, acontecidas no camarim do teatro da escola, onde os meninos, ignorantes, pediam para que as meninas ficassem de quatro para que esfregassem o pau na vulva delas. Traquinagens das quais Cristiane não participava diretamente, mas olhava, ao mesmo tempo em que servia de guarda para que os colegas não fossem pegos na suas safadezas. Ela via, mas não fazia, satisfazia-se com o olhar. Ao colocar traquinas como um elemento significante da cadeia discursiva Cristiane faz uma retroação significante, ela retira o gozo do corpo e passa para o sexual, abrindo espaço para o campo do desejo. Ao passar de traquinas para traquinagem, num deslizamento metonímico, constata-se a existência da rede simbólica, uma prova contundente da existência do sintoma analítico numa estrutura neurótica, emergindo aí várias questões do campo do desejo. Ainda mais, foi a partir destas pontuações que Cristiane se permitiu jogar o jogo da sexuação, fazendo aquilo que é próprio da adolescência, investigar a sexualidade e o fez pelo viés da feminilidade.

Cristiane, até então, uma garota triste e calada passou a se relacionar com outros adolescentes de sua idade, a sair para passear, ir ao cinema e, principalmente, começou a se importar com sua aparência cuidando de seus cabelos e de suas roupas e a se questionar sobre a falta. É neste momento que o vitiligo entra na história com outro estatuto. No sintoma histérico o sujeito encontra recursos para lidar com a angústia, inversamente ao fenômeno psicossomático, onde o sujeito não demanda e também não tem expediente para driblar o gozo. Por isso, é função do analista oferecer significantes para provocar a demanda. Acredito que a insistência da analista em escutar e apontar os significantes foi o que possibilitou o início da transferência, estabelecida, não à priori, mas, no próprio dispositivo analítico cujo movimento esteve a mercê do tempo. Acho que posso apontar como marco para o início da transferência o momento em que Cristiane passou a se interessar por seu drama pessoal e foi em busca de um saber sobre sua verdade para entregá-la à analista, na suposição de que isso ajudaria na decifração de seu sintoma.

Portanto, a possibilidade do deslocamento, no caso de Cristiane, do gozo no corpo para a palavra foi um giro clínico, cujo ganho analítico teve o valor de uma retificação subjetiva.

É importante salientar que o corte introduzido entre traquinas meio-a-meio como forma de nomeação e como deslocamento significante, segundo nossa hipótese, não extrai seus efeitos pela indução da significação sexual e pela refração da alienação imaginária que ele sustentava, mas pela transformação da função de nomeação em função de significante que representa o sujeito.

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