segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Romance Policial e a Pesquisa em Psicanálise


Romance Policial e a Pesquisa em Psicanálise*. Assadi; T.C.; Bichara, M. A.; Dunker, C.I.L.; Gordon, J. e Ramirez, H.H.A.. Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade São Marcos, 1999.

 

Resumo

O presente artigo tem por objetivo estabelecer certas convergências entre a estrutura narrativa do romance policial e condições metodológicas da pesquisa em psicanálise. Procura-se com isso contribuir para a distinção entre a psicanálise como método de cura e como método de investigação ou pesquisa. A convergência entre ambos os campos já foi assinalada por inúmeros autores que apontam a contemporaneidade cultural dos dois discursos em questão. Diferenças substantivas igualmente já foram traçadas. Enfatizaremos os passos da investigação levando em conta o critério de verdade, a formulação de evidências, a construção de problemas e a teoria da prova envolvida em cada um dos discursos apresentados.
Palavras Chave: psicanálise, narrativa, literatura; Freud, Holmes.

Summary:
The following analysis establishes a convergence between the narrative structure of detective literature and the methodological conditions of research in psychoanalysis. It seeks to contribute to the distinction between psychoanalysis as a healing method with psychoanalysis as an investigation or research method. The convergence between both fields has already been identified by several authors aiming at the contemporary cultural aspects of the two fiels in question. Similarly, substantives differences have been outlined. Throughout this analysis, the investigative process is emphasized keeping in mind the criteria of truth, the formulation of evidence, the construction of hypotheses, and the theoretical proofs in each of the two narratives presented.
Key-words: Psychoanalysis, narrative, literature, Freud, Holmes.    

1.Introdução:

             Todos nós conhecemos os contextos: o primeiro, uma úmida e nebulosa tarde, com denso nevoeiro cinzento encobrindo as ruas de pedras; no seu interior a presença das mãos hábeis do criminoso. O segundo, uma escura e cosmopolita cidade encobre a hipocrisia e o anti-semitismo, no seu interior os sonhos intrincados de uma bela mulher.
Todos nós conhecemos os lugares: Londres, cerca de 1881, 1895, ou 1902, quando cavalos e cabriolés, lampiões à gás e as linhas telegráficas, paletó e corpete conviviam sossegadamente .Quando o metrô, não havia sido inventado, o telefone pouco usado e o automóvel quase desconhecido. Todos conhecemos Viena, cerca de 1856, 1895, ou 1908, a monarquia decadente de Francisco José era atravessada pela revolução industrial, com suas valsas, com seu romantismo, teatros, o famoso Danúbio Azul e uma grande crise sócio - econômica.
Todos nós conhecemos os personagens: um deles alto, magro, nariz  aquilino, com um andar felino e movimentos precisos. Sua silhueta é marcada pelo nariz, pelo chapéu de inverno e pelo seu cachimbo curvado. O violino ocasional E todos nós conhecemos uma das suas inesquecíveis expressões de tom irônico: " Meu nome é Sherlock Holmes. Meu trabalho é saber o que os outros não sabem". O outro personagem: barba, charuto empunhado, colecionador de antigüidades. O olhar penetrante, provocador, alvo de incansáveis críticas e desconfianças. É reconhecido como pesquisador dos segredos da natureza e do desenvolvimento humano. Adota, quase como um lema, outra irônica expressão: "Se não posso mover os céus me dirigirei aos infernos"
Sherlock Holmes é o célebre detetive, inventado por Arthur Conan Doyle, o mais simples e mais famoso personagem da literatura inglesa. Muitas vezes confundido com um ser real, habitando em carne e osso a vitoriana Baker Street. Sigmund Freud é o fundador da Psicanálise. Um grande e polêmico pesquisador, conhecido mundialmente. Para muitos mais um personagem do que um ser vivente. Confiante na razão científica inventa um modelo de funcionamento mental, revelando como um detetive da alma, o saber que não se sabe que sabe.
Esse esboço, onde personagens famosos estão mergulhados no mistério e na sua revelação, inter-relaciona o romance policial e psicanálise. Ambos são absolutamente contemporâneos. Freud lia as aventuras de Sherlock Holmes, como confidenciou a seu paciente, O Homem dos Lobos e Sherlock Holmes, foi posto por livros e filmes, no divã de Freud. Ambos se influenciaram e hoje, formam parte do mesmo imaginário.
Quando falamos nestes dois personagens, contemporâneos,  muitas semelhanças surgem imediatamente. Ambos estão imersos na atividade profissional da resolução de mistérios. Ambos realizam tal
tarefa utilizando princípios semelhantes: confiança na razão, atenção á importância dos pequenos detalhes, revelação do sentido oculto em aparências desconexas, justificação límpida e persuasiva de suas conclusões.
Ao final do século XX, podemos enumerar outros tantos detetives famosos que surgiram, tendo sempre como missão indagar e descobrir mistérios como também, foram surgindo os continuadores da obra freudiana, com a mesma missão, decifrar e indagar sobre a natureza da mente humana. Com o passar dos anos, a prática psicanalítica talvez tenha se afastado dos princípios freudianos, principalmente, quanto ao mistério que envolve cada sujeito.  Não acreditamos mais em uma única solução, inexorável e necessária para o drama subjetivo. A metáfora, usada por Freud (1937), de que se trataria de encontrar as peças e montar o quebra cabeças de nossas histórias de tal forma que todos os elementos se reúnam na figura da verdade parece ter perdido sua força. Assim como a confiança no aforisma de Holmes nos soa ingênua: "Quantas vezes eu disse a você que quando você tiver eliminado o impossível, o que quer que reste, por mais improvável que seja, deve ser a verdade”.(A Study in Scarlet,1938).
A subjetividade parece ter perdido sua espessura: nem profunda nem rasa, mas plástica, heteromórfica, mutante e transitória são seus atributos contemporâneos. A própria idéia de um enigma a decifrar perde força diante dos aparatos discursivos de desencantamento do mundo. Os saberes ordenadores e docilizadores do enigma e do mistério, que sempre caracterizaram a esfera da subjetividade moderna. A descoberta do enigma pressupõe paciência, interrogações constantes a valorização do que não se antecipa: o equívoco, o lapso, o sonho, o sintoma. Holmes e Freud são ícones de uma época em que o método se ligava indissociavelmente ao seu praticante. Onde o método não poderia ser facilmente traduzido numa técnica anônima, infinitamente capaz de reprodução e replicação. Ambos não descobriram apenas a singularidade do sujeito criminoso e do neurótico mas também do pesquisador que sob eles se detém.

2.    Os Princípios da Construção da Narrativa

Como observou Todorov (1980, p. 68) o romance policial é constituído pela relação problemática entre duas histórias: a história do crime, ausente, e a história da investigação, presente, cuja única justificativa está em nos fazer descobrir a primeira história. O romance se desenvolve na produção de tensões, conflitos, transformações e equilibrações realizadas entre a conjectura metanarrativa elaborada pelo leitor e a narrativa apresentada pelo texto. A leitura do romance, assim considerada, é uma espécie de jogo cujo objetivo é reconstituir, se possível antes do desenlace, qual a narrativa verdadeira. Temos, portanto dois detetives, o personagem (Holmes, Dupin, Poirot ou Marlowe) e o leitor que é convidado a confrontar sua versão. Tal versão deve ser de fato uma narrativa, isto é, não basta que ela localize o autor do crime, mas deve também integrá-lo numa rede que apresente os motivos, os meios, as circunstâncias e os acontecimentos de forma a produzir uma unidade lógica no conjunto. Os passos que organizam ambas as narrativas são mais ou menos conhecidos: (1) examinam-se as circunstâncias do acontecimento colhendo indutivamente indícios suspeitos, (2) indutivamente testa-se a consistência desses indícios de modo a transformá-los em pistas, (3) pondera-se o valor das pistas de modo dedutivo e procura-se a partir delas construir evidências, (4) conjectura-se uma reconstrução lógica das evidências de forma a desvendar o crime. (5)A partir disso a conjectura é apresentada à alguma forma de instância julgamento que avalia seu valor de verdade.
É uma regra constitutiva deste jogo que os signos e indícios apresentados ao longo da narrativa admitam, necessariamente, mais de um sentido e que eles se coloquem como possíveis soluções para uma fratura de sentido, em outras palavras para um problema. Um bom romance policial é capaz de, ao longo da trama, deslocar o problema originalmente proposto reconfigurando indícios e evidências. Tal reconfiguração passa, muitas vezes pela trama de contextos que se conjuga na narrativa: intenções amorosas, situações pendentes no passado obscuro, pactos por dinheiro ou poder, interesses políticos e segredos relacionais. Em outras palavras, um bom policial assim como uma boa pesquisa resignifica várias vezes os mesmos indícios ou conceitos formando com isso uma trama não completamente antecipável pelo leitor.
A boa narrativa de pesquisa é aquela que se coloca com passos a serem desvendados de forma pontual e precisa, que cria indagações e convida o leitor a interagir com seus enigmas.
É interessante como alguns estudiosos da estilística de Freud, e do seu método de construção de narrativas, nos forneçam indicações sobre como abordar seu texto que parecem valer também como conselhos para um leitor médio de romances policiais. Holt (apud Souza, 1999) faz as seguintes recomendações: (1) cuidado para não retirar as afirmações de seus contextos, (2) esteja alerta para inconsistências, (3) não confie na estabilidade das definições (4) adote um ceticismo benévolo e (5) tenha cautela com o poder de persuasão de Freud. A maior parte destas indicações nos informa que é preciso estar preparado para surpresas e reviravoltas. Além do mais desconfiar das evidências e asserções peremptórias sem ao mesmo tempo deixar de conferir crédito a tais movimentos ao longo do processo narrativo pode comprometer a verdade. 
      Ao tratar da intriga e do mistério Mezan (opus cit), mostra como ele é geralmente produzido a partir da regularidade no real e a necessidade de padrão. O crime é certamente uma descontinuidade na rede de suposições e expectativas que compõe a realidade, mas o que o torna interessante e dignos de investigação são os aspectos desta mesma realidade, antes irrelevantes, que se revalorizarão. São as marcas deixadas pelo assassino, as pequenas rotinas, os detalhes que não se encaixam. É, por outro lado, esta reinvenção do cotidiano, explorada por Freud na sua escolha de temas, que produz o efeito de que a solução estava aí presente e clara desde o início, nós é que não a captamos.
 Holmes, Freud, mas também Dupin, o detetive criado por E. A Poe, rege-se sempre pelo princípio de que o mais difícil de perceber é sempre o que está mais evidentemente mostrado. A busca de um problema intrincado, completamente inovador, como se este sim conferisse relevância à pesquisa, não deixa de conter uma certa ingenuidade e desconhecimento da força no simples, evidente e supostamente já sabido. A força desta estratégia de construção requer, em contrapartida, a atenção dirigida ao detalhe dissonante. O raciocínio clínico de Freud e Holmes não opera por exaustão, pela descrição completa, mas pela força do fragmento pela produção do elemento único e irredutível.
Outra faceta desta estratégia aparece na correlação explicitamente apontada por Freud entre sua estratégia de investigação e o método de Morreli desenvolvido para detectar falsificações em obras de arte. Morelli diz que os grandes traços característicos de um pintor ou de uma escola são muito mais facilmente imitados do que pequenos detalhes como a composição de uma mão ou o desenho da curvatura de um dedo. Na análise da escultura de Móisés, feita por Michelangello, Freud parte exatamente de uma injustificável tensão nas mãos de Moisés, para desenvolver uma narrativa do que teria acontecido naquele instante, segundo a imaginação de Michelangelo, para que esta tensão ali fosse figurada. Freud argumenta que a tensão das mãos torna-se compreensível se for associada ao momento em que Moisés pretende se levantar, irado pela adoração do bezerro de ouro, contendo sua violência e transferindo esta ilação de afeto para um imperceptível movimento de apego das mãos às escrituras.
Mas a idéia de que a investigação psicanalítica procede pela montagem de um quebra cabeças em analogia com a investigação ilustrada pelo romance policial tem também seus críticos. Spence (op. cit.) afirma que a idéia de uma solução inferencialmente única para o problema levantado deriva na verdade de dois movimentos de "aplainamento narrativo". Em outras palavras, o psicanalista seleciona fatos, supervaloriza evidências, descarta dissonâncias em dois níveis. Primeiro durante a sessão onde tem que eleger certos elementos em detrimento de outros e em segundo nível, na redação da pesquisa quando valoriza certos aspectos produzindo uma falsa unidade requerida por uma exposição persuasiva e sistemática. Para Spence levar a sério este ponto corresponde à admitir que a psicanálise é no fundo um gênero literário e que correlativamente ela deve abandonar suas pretensões de estabelecer-se como ciência que busca a investigação da verdade. A crítica de Spence destaca um aspecto irrefutável. Ao comprimir as mais de 800 páginas de notas que compõe o material clínico que serviu de base para a redação do caso clínico conhecido como Homem dos Ratos e, ao apresentá-lo sob forma de uma narrativa coerente, muitas escolhas podem ser argumentadas como injustificáveis.
Mas, como observa Mezan, (op. cit) a mestria da composição freudiana reside justamente nisso. O aplainamento narrativo, no sentido crítico pejorativo, empregado por Spence, certamente não permite que olhemos para a análise de um caso como o espelho dos fatos linearmente ajustados sob forma da única explicação possível.
 A metáfora da investigação policial pode ser traiçoeira se isso significar apenas a introdução da ordem onde antes governava o caos, o restabelecimento do equilíbrio perdido. É preciso ter em mente que este movimento se companha, tanto no romance quanto na pesquisa em psicanálise, do movimento inverso de introdução da desordem, onde antes reinava a continuidade estável do real. A produção da surpresa e do enigma onde antes havia a trivialidade do já sabido.
Spence se fixa em demasia no primeiro movimento, por exemplo, quando afirma: "Apresenta-se um detetive (terapeuta) que se vê diante de uma série de acontecimentos estranhos e desconexos (sintomas) relatados por um cliente algo desesperado e desorganizado (paciente)”. (Spence, 1992, p. 138). Poderíamos refazer a frase de Spence, invertendo os sinais, e mesmo assim ela permaneceria válida para o contexto da pesquisa em psicanálise: "Apresenta-se um detetive (terapeuta) que se vê diante de uma série de acontecimentos banais e coerentes (sintomas) relatados por um cliente algo tranqüilo e organizado". Ocorre que como o problema não é dado como um fato da natureza e sim construído pelo detetive a banalidade ou trivialidade é apenas uma parte da história sobre a qual se engendrará uma segunda narrativa.
 Sherlock Holmes, na investigação do caso conhecido como "Estrela de Prata", nos auxilia novamente na compreensão desta questão. Trata-se do desaparecimento de um cavalo de corrida e do assassinato de seu treinador ocorrido durante a noite que antecede a grande corrida. O cuidador do animal talvez tivesse sido dopado, uma sugestiva caixa de fósforos foi encontrada no local e sinais de luta no corpo da vítima. Uma série de pequenos indícios acusa a presença de um outro na cena do crime. Várias coisas fora do lugar compõem o quebra cabeças a ser reconstruído. No entanto, a solução não passa apenas pelo mero recolhimento destas pistas, mas também pela produção e constatação do que permanece, aparentemente, o mesmo. Eis um exemplo do que se diz por este diálogo chave: "É preciso entender o problema representado pelo cão - diz Holmes. Mas qual problema? Ele permaneceu dormindo como sempre - retruca Watson. É justamente esse o problema, meu caro Watson”. De fato o acontecimento crucial representado pela ausência de latidos do cão conduz à idéia de que foi o próprio treinador quem retirou o cavalo a partir do que o caso se resolve pela inclusão dos demais detalhes.
A função de Watson é um elemento clássico do romance policial. Ele ocupa o lugar estruturalmente necessário do personagem que se engana. Não da mesma maneira que a polícia que se engana pela impossibilidade em isolar as diferenças que fazem diferença, que tudo olha, mas nada vê, que trabalha pela exaustão e opera com um roteiro que universaliza as ações desconhecendo a singularidade do criminoso. Watson e Hastings, os fiéis companheiros de Hercules Poirot são personagens de mediação entre o leitor e o detetive. Eles representam o senso comum atraindo para si uma identificação do leitor. É com eles que o detetive argumenta, se justifica e presta contas de suas ações. Corresponde a figura tantas vezes utilizada por Freud do "interlocutor imparcial" ou presente pela interpolação, no texto, de expressões tais como: "Sei que será difícil ao leitor me acompanhar neste ponto, mas..." ou  ainda "Peço compreensão ao leitor mas também quando o paciente relatou-me isso pela primeira vez não pude entender ... ". Essa dissociação do autor do texto em vozes dissonantes e dialogantes, presentes na narrativa, aparece ainda no extenso uso da ironia como recurso retórico caraterístico do romance policial.
Freud, habitualmente fazia interlocução com Fliess. É necessário um outro para a construção do método clínico. Na pesquisa psicanalítica o interlocutor aparece muitas vezes como sendo o próprio texto, o orientador ou mesmo o leitor.
 A Função-Watson é relevante para avançarmos para um outro problema da pesquisa psicanalítica, especialmente quando esta se desenvolve no âmbito da universidade. De que lugar fala o pesquisador em seu texto? Certamente não é o de analista, mas o de testemunha de uma experiência elaborada. Surge aqui uma importante diferença entre a psicanálise enquanto método de cura e a psicanálise enquanto método de pesquisa ou ainda como campo de doutrinas e saberes articulados sobre o inconsciente. Freud oferecia esta tripla definição da psicanálise, mas não desenvolveu inteiramente quais seriam suas consequências. Admitindo-se a proximidade entre a narrativa policial e a pesquisa psicanalítica pode-se postular que o lugar de onde se escreve uma pesquisa psicanalítica é muito semelhante ao ocupado por Watson, ou seja, o de compartilhar a experiência da investigação. É ele quem narra as memórias de Holmes, são para ele que os argumentos e justificativas são expostos e sem ele o efeito de surpresa se transformaria numa tediosa exposição dedutiva, perdendo muito de sua plausibilidade e da estrutura, essencial, de diálogo.

3.    Investigação Freudiana e o Problema do Desenvolvimento

Vejamos então algumas implicações deste modo de compreender a investigação freudiana, para o tema do desenvolvimento. Em primeiro lugar isso traz à consideração de que utilizar a teoria freudiana como uma teoria do desenvolvimento infantil exige muitas concessões a ambos os termos envolvidos. O desenvolvimento, entendido como uma série de etapas em sucessão linear articulada por conexões causais, orientado por uma teleologia que culminaria na chamada organização genital constituiu um forte ponto de apoio para tradições pós-freudianas. Deste modo o substrato maturacional, tornar-se-ia o ponto fixo, biológico e universal, que conferiria à psicanálise uma sólida base epistemológica para enfrentar as objeções contra sua cientificidade. Ocorre que neste movimento o objeto de investigação do psicanalista desloca-se do campo da narratividade para o campo da descrição. O sujeito da narrativa, um personagem concreto e singular é absorvido a uma abstração universal: a criança, o bebê, o infantil. Passa-se da sobredeterminação à determinação. A psicanálise recai em psicologia. Produz-se assim uma chave de valor meta-narrativo, que não produz mais surpresa ou resignificação. A teoria assim constituída condena a singularidade da experiência ao ajustamento fazendo da interpretação mera tradução da narrativa singular a esta meta narrativa universal. A diferença entre o organismo e o corpo é que este último, para a psicanálise, é um corpo-narrativo, um corpo falado e falante. O organismo por sua vez é mudo, destituído de significação, é apenas um fato de sentido.
Em função deste pressuposto podemos entender a dimensão absolutamente ficcional pela qual Freud aborda o desenvolvimento. Por exemplo, para explicar a universalidade do complexo edipiano e da experiência de angústia que está no seu centro, Freud recorre a uma narrativa das origens da civilização. Isto é explica a regularidade das narrativas singulares postulando uma narrativa na qual estas se incluem e é, por assim dizer, seu prolongamento. A narrativa interminável da cultura. Ora, Totem e Tabu é uma narrativa apoiada em inúmeros dados antropológicos do início do século. Dados que encontram sérias objeções atualmente, mas também na época em que Freud estava vivo. Se as objeções antropológicas a Totem e Tabu são pertinentes, e tudo indica que são, sua utilidade para a psicanálise deveria ser descartada. Mas tal não ocorre, justamente porque o teor narrativo e ficcional de Totem e Tabu continua atual para a compreensão da narrativa singular de neuróticos contemporâneos.
A história da psicanálise sempre se perguntou porque os “dados” oriundos das pesquisas mais duras sobre o desenvolvimento, no sentido maturacional, não pareciam tocar ou perturbar as teses psicanalíticas. Ocorre que tais dados, para constituírem utilidade para a psicanálise implicam numa leitura que os transforma em bloco ou soluções narrativas. É o caso, por exemplo, do estádio do espelho, postulado por Lacan que é apresentado como um “um drama da insuficiência”. Apesar de amplamente baseado em “dados” da etologia da década de 30 o que conta não são o seu teor de dado enquanto reflexo de uma determinada realidade empírica, mas o drama que ele permite entrever. O mesmo pode se aplicar á descoberta do objeto transicional por Winnicott, que enquanto dado objetivo, é infinitamente pobre perto dos fenômenos narrativos de transicionalidade que este permite pensar. Igual argumento se poderia levantar para o uso dado por M. Klein a certos acontecimentos da vida precoce do bebê. O que os tornou psicanaliticamente úteis é a narrativa, algo fantástica, que ela utiliza para articulá-los.
Os dados colhidos da psicologia do desenvolvimento no seu sentido mais estrito são comparáveis ao trabalho que a polícia técnica tem para a solução de um caso policial. Eles apenas conferem solidez e persuasão a alguns indícios, mas que, destacados da trama, são inúteis e impostos por si mesmos como uma trama, mostrando-se particularmente pobres.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
APPIGNASE, R. and Zarate, O. - Freud for beginners, Icon Book,    Cambridge, Great Britian, 1992.
DOYLE, A. C. - Memórias de Sherlock Holmes ,L&PM Pocket, vol.166,
Porto Alegre, 1999.
GAY, P. - Freud - Uma vida para o nosso tempo, Companhia das Letras, São Paulo, 8ª impressão,1997.
GOLDGRUB, F. - Freud, Marlowe & Cia, Educ - editora da Puc- SP, Nova Alexandria, São Paulo, 1994.
LIPARI, P. - The Baker Street companion, Ariel Books, Kansas City, USA, 1996.
MEZAN, R. - Escrever a clínica, Casa do Psicólogo, São Paulo, 1998.
SPENCE, Donald P. A metáfora Freudiana: uma mudança paradigmática na psicanálise. Trad. Júlio Guimarães. Rio de Janeiro, Imago, 1992.



  1. Tatiana Carvalho Assadi; psicanalista; Mestre em psicologia pela Universidade São Marcos; pesquisadora do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da Unicamp. Tel. (11) 4794.3535 tatiassadi@uol.com.br
  2. Maria Auxiliadora M. Bichara; assistente social; Mestre em psicologia pela Universidade São Marcos. Tel. (11) 5054.0321 bichara@osite.com.br
  3. Christian Ingo Lenz Dunker; psicanalista; Doutor em Psicologia pela Universidade São Paulo; Prof. Dr. Do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade São Marcos; Tel. (11) 3887 3037; chrisdunker@uol.com.br
  4. Joëlle Gordon; psicanalista; Mestre em psicologia pela Universidade São Marcos; Tel. (11) 289 2163; jgordon@uol.com.br
  5. Heloísa Helena Aragão e Ramirez; psicanalista; Mestranda em psicologia pela Universidade São Marcos; Tel.(11) 5539 6266; heloramirez@bol.com.br






·        Artigo apresentado em comunicação oral no Congresso Internacional do Desenvolvimento Humano – Abordagens Histórico-Culturais. – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Diretoria de Relações Internacionais da Universidade São Marcos, com o trabalho: Freud: Pesquisador do Desenvolvimento Humano” em co-autoria com o Núcleo Família e Psicanálise. – setembro/1999.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Programação IX Fórum no Interior FCL-SP/Mogi das Cruzes



Olá Pessoal, 

Eis a programação do IX Fórum no Interior Mogi das Cruzes. Está excelente. E, como é praxe no Circuito ponto de Estofo, não deixamos de lado a programação cultural. 


Você não pode faltar!!!

terça-feira, 28 de junho de 2011

IX Fórum no Interior - FCL-SP

Caríssimos colegas,

Em 20 de agosto de 2011, teremos um grande evento na cidade de Mogi das Cruzes.

Estaremos recebendo, com muita honra,  o diretor do Fórum do Campo Lacaniano SP, gestão 2011, CONRADO RAMOS, para uma conferência sobre interpretação e ato psicanalítico.

Como este será um evento em tempo integral, teremos um sábado bastante produtivo. À tarde estará conosco a figura proeminente do colega CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER, que tratará pela via da psicanálise a questão da diagnóstica.

SIMPLESMENTE IMPERDÍVEL!!!
Coordenação Geral: Tatiana Assadi e Heloísa Ramirez



quinta-feira, 16 de junho de 2011

"A Pele como Litoral"


Livro: A Pele como Litoral: Fenômeno psicossomático e psicanálise.
Heloísa Ramirez; Tatiana Assadi e Christian Dunker

Organizado a partir de uma extensa pesquisa clínica e bibliográfica sobre o atendimento ao paciente com afecções dermatológicas tidas como “psicossomáticas”, o livro traz uma série de textos sobre a articulação da psicanálise e a relação do sujeito com o corpo. Realizado em sua maior parte no contexto ambulatorial o trabalho (fruto do projeto de pesquisa Aspectos psicológicos do paciente com vitiligo e psoríase, elaborado e aplicado no âmbito do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise em cooperação com o Instituto da Pele) foi criado para atender a demanda de alguns dermatologistas que se questionavam sobre a não aderência do paciente ao tratamento. “Não é fácil compreender, já que o êxito ou não dos resultados obtidos depende da adesão e da relação do paciente com o tratamento, o fato de o doente ir ao médico, receber ou adquirir toda a medicação prescrita e não seguir a orientação recomendada. Há algo aí que falha, que escapa ao saber e que se apresentava como questão para a equipe médica.”, diz Heloísa Ramirez. Mas o diferencial deste projeto encontra-se na criação de um dispositivo que a equipe denominou de Consultas Compartilhadas, um procedimento em que o analista acompanha as primeiras consultas médicas do paciente, e que “tem como finalidade verificar, na relação médico-paciente, indícios de uma possível aderência ao tratamento, aspectos relativos à dinâmica da doença, e, mais ainda, a partir do discurso do paciente, se é possível vislumbrar algum sinal de demanda, ainda que mínima, para um atendimento psicanalítico”. Esta parceria rendeu ao livro a participação da equipe médica na sua composição. Depois do primeiro capítulo, onde é contada a história do projeto, encontram-se três artigos onde é possível conferir a visão médica sobre as afecções de pele estudadas no projeto: psoríase, vitiligo e psicodermatoses. Os demais artigos são psicanalíticos e em sua maioria se referem à clínica. O livro foi prefaciado pela psicanalista Sonia Alberti, professora adjunta do Instituto de Psicologia da UERJ e AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano: “A pele como litoral é uma gran¬de contribuição para além das fronteiras em que se situ¬am os dois campos: psicanálise e medicina”.

Pedidos do livro pelo email: heloramirez@ gmail.com
Valor R$ 35,00 mais frete.

Minibigrafias dos organizadores:

Heloísa Helena Aragão e Ramirez
Psicanalista. Membro da EPFCL (Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano); Membro do Fórum do Campo Lacaniano – SP. Coordenadora da Rede de Pesquisa e Clínica em Psicossomática em São Paulo e Mogi das Cruzes, e do Projeto do grupo Psicanálise e Filosofia: implicações clínicas (USP/SP) na linha de pesquisa: Corporeidade em psicanálise: a psicossomática,alocados em São Paulo, no ABC e em Mogi das Cruzes. Autora de artigos de psicanálise publicados em revistas científicas.

heloramirez@gmail.com

Tatiana Carvalho Assadi
Psicanalista. Membro do Fórum do Campo Lacaniano – SP.
Coordenadora da Rede de Pesquisa e Clínica em Psicossomática
em MC/SP. Pós-doutoranda em Psicologia Clínica (USP/SP) -
Doutorado em Ciências Médicas pela
Universidade Estadual de Campinas (2007.
Pesquisadora do Estudo comparativo internacional das marcas-corporais auto-infligidas à luz dos laços sociais contemporâneos: Função das tatuagens e escarificações na economia psíquica dos jovens adultos: gênese, relação com o corpo, solução subjetiva. PST-USP e Laboratoire de Psychopathologique et
clinique psychanalytique.-Rennes 2- Fr. Escreveu, entre outros,
Email: tatiassadi@uol.com.br

Christian Ingo Lenz Dunker
Psicanalista. Professor Livre-Docente do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP. Pós Doutorado na Manchester Metropolitan University. Analista Membro de Escola (AME) da Escola dos Fóruns de Psicanálise
do Campo Lacaniano. Autor de Lacan e a Clínica da Interpretação (Hacker, 1996) e o Cálculo Neurótico do Gozo (Escuta, 2002) além de diversos artigos e capítulos de livro em revistas científicas de diferentes países.

chrisdunker@usp.br

quinta-feira, 9 de junho de 2011

"A pele como litoral" - Lançamento em SBC - 11 junho - 10 horas

Olá pessoal,

Heloísa Ramirez e Tatiana Assadi estarão no espaço Attenda, Rua Senador Flacker, 601, falando sobre o livro A Pele como Litoral e apresentando um caso clínico.

Quem puder, apareça.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Sobre a Metáfora Paterna e a Foraclusão do Nome-do-Pai: uma introdução.

Heloísa Helena Aragão e Ramirez.
e-mail: heloramirez@yahoo.com.br

Sobre a Metáfora Paterna e a Foraclusão do Nome-do-Pai: uma introdução.

Resumo
O objetivo deste estudo é fazer uma leitura preliminar dos conceitos lacanianos de Metáfora Paterna e de Foraclusão do Nome-do-Pai. Lacan coloca o Édipo como uma armadura significante mínima que permite a entrada do sujeito no mundo simbólico. Por ser simbólica é possível operar a função paterna como uma metáfora, assim, o Nome-do-Pai entra em substituição ao falo enquanto objeto de desejo da mãe. Produzindo o Nome-do-Pai, a criança estará nomeando, metaforicamente, o objeto fundamental do seu desejo, embora sem o saber, já que o significante originário foi recalcado. Mas, este processo é passível de falha, na estrutura simbólica, e implica na foraclusão do Nome-do-Pai, acidente que ressoa sobre a estrutura imaginária, dissolvendo-a e conduzindo-a a estrutura elementar, provocando a desestruturação imaginária, paradigmática da psicose.

Palavras chave: Metáfora Paterna; Nome-do-Pai; Foraclusão.
Sobre a Metáfora Paterna e a Foraclusão do Nome-do-Pai: uma introdução.

O PAI E O MITO

Para compreender o que está na base da teoria freudo-lacaniana das psicoses, é necessário iniciar o percurso no que está posto em sua origem: o Pai.
Neste contexto, Freud já indicava que o homem em posição de sujeito circula pela verdade, pois que isto é uma questão fundamental de sua existência, embora seja lícito dizer que ele se acomoda muito bem a não verdade.

E para a psicanálise do que se trata? De saber por quais vias a dimensão da verdade entra na vida do homem. Freud em Moisés e o Monoteísmo (1939), responde a isto dizendo que é por intermédio da significação da idéia de pai, realidade sagrada em si mesma, espiritual, cuja função, presença e dominância não pode ser explicada pela simples realidade do vivido, a não ser pela via do a-histórico, mítica, da inscrição do homem na origem da sua história. Nessa medida, a teoria psicanalítica utiliza a perspectiva do mito, para dar conta do substrato psicológico comum a todos os homens e que se manifesta por sua inscrição na ordem edípica, ordenada pela dialética do desejo em face das diferenças de sexos.

Utilizar o mito como metáfora incide na sua estrutura como algo que não modifica o seu sentido, mesmo que seja interpretado permanece no tempo, diferente da escrita que relata coisas de uma época que ao longo do percurso podem ser modificadas.

Lévi-Strauss (1976) quando analisa o mito do Édipo coloca o sujeito frente à dimensão espaço-sócio-cultural, uma vez que para ter uma boa resolução, o mito deve operar e resolver a contradição Natureza x Cultura. Como todas as sociedades humanas normativizadas e regulamentadas são consideradas em estado de cultura, inclusive as sociedades ditas primitivas, foi preciso conseguir identificar através de todas essas culturas, o substrato comum ao conjunto dos homens, do qual se diria então que constitui seu estado de natureza. Este substrato deveria ser ao mesmo tempo aquilo que define uma cultura e aquilo que, sendo universal, participa de uma natureza. O quê se busca foi identificado nas regras que ordenam as trocas matrimoniais onde figura sempre uma lei universal: a da proibição do incesto. Esta lei constitui o critério rigoroso que permite separar a cultura da natureza. A partir da lei da proibição do incesto é que se pode estabelecer o limite entre o natural e o cultural e a ordem edípica pode, legitimamente, apresentar-se como o substrato universal que designa a dimensão do natural no homem, permitindo ao sujeito o acesso ao registro do simbólico, ou seja, o acesso à cultura, gerado pela expressão de uma falta.

Através do mito freudiano do pai da horda primitiva , a psicanálise pode pensar a questão originária do incesto e da instituição de sua interdição e o mito do Édipo, tentativa de explicar como se opera o inconsciente, determinante da posição do sujeito com a alteridade e da sua forma de se relacionar com a cultura.

Lacan, por sua vez, através do aforismo: o inconsciente estruturado como uma linguagem, coloca o Édipo como uma armadura significante mínima que permite a entrada do sujeito no mundo simbólico. Toma como referência o falo , não como uma castração via pênis, mas como referência ao pai, cuja função é mediatizadora da relação da criança com a mãe e da mãe com a criança .

É a estrutura de linguagem, que antecede a uma criança, que a determina e o seu lugar no discurso. Lacan privilegia o signo lingüístico, decomposto em significante e significado para fundamentar a idéia de que a estrutura do sujeito equivale a uma estrutura de linguagem, pois, é a partir desta alteridade que o homem pode se constituir como sujeito. A criança já nasce inscrita na linguagem. A ela é dado um nome, um lugar, trata-se da significação que para o adulto, o filho adquire, muito embora ele já tenha sido significado muito antes de nascer, quando encontrou um lugar na família. “Pela razão primeira de que a linguagem, como sua estrutura preexiste à entrada de cada sujeito num momento de seu desenvolvimento mental (Lacan, 1966)”.

Nesta medida, demonstra como a criança se tornará sujeito a partir da operação da metáfora paterna e de seu mecanismo o recalque originário que se desenvolve com base numa substituição significante, aonde um significante novo tomará o lugar do significante originário do desejo da mãe, que recalcado em benefício do novo vai se tornar inconsciente, o que significa que a criança renunciou ao seu objeto inaugural de desejo.

Por ser simbólica é possível operar a função paterna como uma metáfora. Tomando-se o significado de metáfora como um significante que vem no lugar de um outro significante, o Nome-do-Pai entra em substituição ao falo enquanto objeto de desejo da mãe.

Para entender esta operação, é necessário localizá-la próximo a um momento da vida psíquica da criança, denominada por Lacan de Estádio do Espelho, quando ela realiza uma identificação primordial na sua relação de alienação específica com a mãe. Neste processo de identificação fundamental, a criança apreende sua própria imagem, antes esfacelada, como uma totalidade unificada, o que lhe permitirá promover a estruturação do Eu.


O ESTÁDIO DO ESPELHO

O estado prematuro da criança ao nascer faz com ela estabeleça uma relação de dependência com a pessoa que a cuida, normalmente a mãe, que desempenha a função daquele que supre suas carências tanto no plano biológico como no plano imaginário. Como a prematuridade não é apenas biológica, mas simbólica também, ela necessita do Outro no lugar do código para mediar o seu desejo. Num primeiro momento, este outro é o outro real, da primeira dependência, da relação dual, imaginária, na qual um se confunde ao outro. Ao satisfazer as necessidades físicas da criança, à mãe o faz segundo um código simbólico que determina esta relação, permitindo que o seu desejo se articule em demandas que fará da criança desejada, ou não, possibilitando sua entrada na erogenização. É através desta mediação, na qual a mãe ocupa a função de Outro Absoluto, provendo a criança de alimentos, amor e palavras, que ocorrerá o acesso ao campo do simbólico.

A conquista da gestalt corporal pela criança dá-se pelo reconhecimento de sua imagem no espelho, mediada pela imago da mãe. Esta experiência organiza-se em três tempos, a saber: no primeiro momento o que existe é uma confusão entre ela própria e o outro, em virtude da relação estereotipada que tem com a mãe, pois é no outro que ela se vivência e se orienta. A criança percebe no espelho sua imagem e a toma como a de um ser real de quem tenta se aproximar. É o seu assujeitamento ao registro do imaginário.

No segundo tempo, ela descobre que o outro no espelho não é um outro real, mas uma imagem. Esta descoberta propicia que ela não mais procure se apoderar desta imagem e lhe permite distinguir a imagem do outro da realidade do outro.
O passo seguinte é a dialetização dos dois momentos anteriores. Em primeiro lugar, ela já está segura de que o que aparece no espelho é apenas uma imagem e que aquela é a sua imagem, o que permite a ela se re-conhecer e a recuperar a dispersão do corpo esfacelado, numa totalidade unificada, representação do corpo próprio.

Porém, o estádio do espelho unicamente não é suficiente para que o ser possa tomar posse do seu corpo, que só se constitui como tal a partir do corpo simbólico. O sujeito ainda precisa simbolizar a legalidade que rege a relação existente entre o objeto, a imagem, o espelho e o sujeito (Cabas, 1980).


O COMPLEXO DE ÉDIPO

A inscrição no registro do simbólico se fará a partir da dialética edipiana, processo que se funda nos três tempos do Édipo.

No primeiro momento, a criança ainda mantém com a mãe uma relação de indistinção, reforçada pelos cuidados que recebe e pela satisfação de suas necessidades. Esta relação quase fusional a permite supor ser seu objeto de desejo. É na posição de objeto (falo) que a criança se coloca como suposto completar o que falta à mãe. Ao querer constituir-se como falo materno, a criança coloca-se como único objeto de desejo da mãe, assujeitando seu desejo ao dela. O que a criança busca é fazer-se desejo de desejo, poder satisfazer o desejo da mãe, quer dizer: ‘to be or not to be’ o objeto de desejo da mãe... (Lacan, 1958).

Por outro lado, prover as necessidades do filho não é o único desejo da mãe: detrás dela perfila toda ordem simbólica da qual ela depende e esse objeto predominantemente da ordem simbólica é o falo. (Lacan, 1958,).

Neste primeiro momento a problemática fálica situa-se sob a forma da dialética do ser. A natureza do objeto fálico com a qual a criança se identifica, confere um caráter imaginário a esta relação, uma vez que pressupõe a ausência da instância mediadora (Pai), contudo, apesar de não contar com a intervenção do pai, a relação se dá pela identificação fálica da criança como objeto de desejo da mãe. Esta elisão à mediação da castração e a identificação de objeto fálico coloca-a numa posição dialética em ser ou não ser o falo.

O segundo tempo do Édipo, parte justamente desta dialetização de ser ou não ser o falo introduzindo a dimensão paterna, que intervirá na relação mãe-criança-falo, sob a forma de privação .

O pai é aquele que interdita a satisfação do impulso da criança na medida em que ela percebe que é para o pai que a mãe se dirige. A entrada do pai na relação intersubjetiva mãe-criança como quem tem o direito àquilo que diz respeito à mãe é vivida pela criança como uma frustração. Por outro lado, também a mãe se vê privada do falo suposto, a criança identificada como seu objeto de desejo. Desta forma a criança é introduzida no registro da castração, pela entrada em cena da dimensão paterna e passa a se interrogar sobre ser ou não ser o falo. O que permite sua entrada na dialética do ser é o aparecimento do pai, outro, na relação mãe-criança, surgindo na vida subjetiva como um objeto fálico possível. O pai, como objeto rival, aparece como um outro intermediário, terceiro, na relação mãe-criança e apresenta-se como objeto do desejo da mãe, imaginariamente, como aquele que é o falo. Tendo deslocado o falo para o lugar da instância paterna, a criança se depara com a Lei do pai, fundada no pressuposto de que a própria mãe depende desta Lei. Portanto, para responder as demandas da criança, é preciso que através da mãe este desejo passe necessariamente pela Lei de desejo do outro (o pai).

“No plano imaginário, o pai, pura e simplesmente, intervém como privador da mãe, ou seja, o que é aqui endereçado ao outro como demanda é remetido a um tribunal superior, é substituído, como convém, pois sempre, sob certos aspectos, aquilo sobre o que interrogamos o “outro”, na medida em que ele o percorre em toda a sua extensão, encontra no outro este “outro” do outro, isto é a sua própria lei. E é a este nível que se produz alguma coisa que faz com o que o que retorne à criança, seja pura e simplesmente a lei do pai, enquanto imaginariamente concebida pelo sujeito como privando à mãe”. (Lacan, 1958).

Com esta descoberta a criança significa o desejo da mãe como submetido à lei do desejo do outro que implica que o seu próprio desejo depende de um objeto, que o outro é suposto ter ou não ter.

Conforme Lacan, tem-se aí chave da relação do Édipo e do seu caráter essencial, a relação da mãe com a palavra do pai e com aquilo que ele é suposto possuir, que a satisfaz e regula o desejo que ela tem de um objeto que não é mais a criança. Ela se remete ao desejo de um outro, reconhecendo a lei do pai como aquela que mediatiza seu próprio desejo. O pai que priva é o que apresenta a lei.

A criança, nesta perspectiva, tem acesso à simbolização da lei do pai, confrontada com a questão da castração na dialética do ter. A mediação que o pai introduz na relação com a mãe é o fato de que ela o reconhece como aquele que lhe dita a lei, o que permite à criança colocá-lo em um lugar de depositário do falo. Quando esta intrusão significativa coloca em dúvida o seu desejo é que a criança vai poder re-questionar sua identificação imaginária de objeto fálico da mãe. A incerteza psíquica, forçada pela função paterna coloca em questão o seu desejo e a permite confrontar-se com o registro da castração pela instância paterna. A criança dá-se conta de que não é o falo e que também não o tem, assim como sua mãe.

É no terceiro momento, tempo de declínio do complexo de Édipo, que a criança irá dialetizar os outros dois. Ameaçada em seus investimentos libidinais, a criança descobre que também a mãe nutre um desejo em relação ao desejo do pai. Lacan formula:

“Alguma coisa que destaca o sujeito de sua identificação o ata, ao mesmo tempo, à primeira aparição da lei sob a forma do fato de que, neste ponto, a mãe é dependente; dependente de um objeto que não é mais, simplesmente, o objeto de seu desejo, mas um objeto que o outro tem ou não tem”. (Lacan, 1958).

A rivalidade fálica que gira em torno da mãe é que intervém e coloca o pai no lugar daquele “que tem o falo, e não como aquele que o é, que pode se produzir algo que re-instaura a instância do falo como objeto desejado pela mãe, e não mais apenas como objeto do qual o pai pode privá-la” (Lacan, 1958).

Ocorre um novo deslocamento do objeto fálico onde a instância paterna deixa seu lugar no imaginário para advir ao lugar de Pai simbólico, no qual será investido como aquele que tem o falo.

A criança, na problemática fálica, deixa de lado ser o falo para aceitar a problemática de ter o falo. A dialética do ser e ter põe em jogo as identificações. O menino se inscreverá na lógica identificatória, a partir do momento em que renuncia ser o falo e engaja-se na dialética de ter, identificando-se com o pai que é suposto ter. A menina se identifica com a mãe, deparando-se com a dialética do ter a partir do não ter. Como a mãe, ela não tem, mas sabe onde encontrá-lo.

O que se torna estruturante é o fato do falo voltar a seu lugar de origem, ao pai, através da preferência da mãe, a qual irá desencadear a passagem do ser ao ter e que determinará a instalação da metáfora paterna.


A METÁFORA PATERNA

O processo de simbolização acontece sob o domínio da ausência, conforme a referência freudiana do Fort-da . Trata-se de uma metáfora duplicada em uma outra metáfora. Na primeira, presença e ausência da mãe são representadas pelo aparecimento e desaparecimento do carretel, e na segunda, a criança atribui, a ausência e presença do objeto, o significado For e Da.

Ao realizar, através do carretel, a operação simbólica da presença-ausência da mãe, opera-se, concomitantemente, uma inversão simbólica: ao se ausentar, deixando a criança sozinha, é como se a mãe a tivesse repelido; quando a criança lança o carretel, é ela quem passa a repelir, tomando desta forma o controle da situação.

“Inaugura-se pela própria linguagem a dialética da presença e da ausência. Através da palavra a coisa é presentificada em sua ausência, a própria palavra ou qualquer signo que venha substituí-la, tem que estar imediatamente presente, mas também, se ousamos dizê-lo ausente de sua presença” (Waelhens, 1982).

Com esta operação, pressupõe-se que a criança renunciou à sua identificação primordial de ser o falo para a posição de ter o falo, quando ela deixa de ser o objeto que satisfaz o desejo do outro e pode, então, mobilizar seu desejo para objetos substitutivos ao objeto perdido.

É através da metáfora paterna e de seu mecanismo fundamental, o recalque originário, que a criança efetuará uma substituição significante, colocando um novo no lugar do significante originário do desejo da mãe. À medida que o significante originário é substituído pelo novo, automaticamente, ele é recalcado, passando para o inconsciente, o que permite de fato à criança efetivar a renúncia ao objeto inaugural de desejo, tornando inconsciente o que antes o significava.
Lacan, 1968, em Uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, propõe uma fórmula para explicar esta operação:

Onde os S são significantes, x é a significação desconhecida e s é o significado induzido pela metáfora, que consiste na substituição da cadeia significante, de S’ por S. A elisão de S’ aqui representada por seu risco é a condição do sucesso da metáfora”. (Lacan, 1955-1956)

Ao atribuir as ausências da mãe ao pai, processo onde ocorre uma associação significativa: mãe ausente = presente junto ao pai, a criança estará nomeando o pai, primeiro como um objeto fálico rival e depois como aquele que detém o falo. A partir daí, o que ocorre é uma elaboração da relação significante, onde a criança pode designar e nomear a causa das ausências da mãe, invocando a referência do Pai. Dito de outra maneira, ela estará nomeando o pai por aquilo que ela supõe ser o desejo da mãe. Ela associa o novo significante Nome-do-Pai (S2) ao significado falo (s1). A entrada do significante Nome-do-Pai substituindo o significante falo fará com que o falo torne-se inconsciente.

Onde A é Outro e indica que “a presença do significante no Outro é, com efeito, uma presença inacessível ao sujeito na maioria das vezes, já que em geral, é no estado de recalcado (Verdrängt) que ela persiste, e é daí que ela insiste em se representar no significado por meio de seu automatismo de repetição (Wiederholungszwang)” (Lacan, 1955-1956).

O algoritmo geral desta fórmula seria:

FALTA FÓRMULA METÁFORA PATERNA

No segundo termo da fórmula, o símbolo ‘I’ (inconsciente) nos lembra que S1 foi recalcado graças a substituição de S2, de agora em diante o significante associado ao significado (s1) do desejo da mãe, ou seja, o falo” (Dor, 1990).
Ao final da substituição metafórica, o pai será sempre referido ao falo como um puro significante. Produzindo o Nome-do-Pai, a criança estará nomeando, metaforicamente, o objeto fundamental do seu desejo, embora sem o saber, já que o significante originário foi recalcado.
“Assim também fica esclarecido o jogo intrínseco ao complexo de Édipo, no qual a metáfora do Nome-do-Pai vem testemunhar a atualização da castração, que intervém sob a única forma em que é inteligível: a castração simbólica. O falo aparece, com efeito, ao final do Édipo, como perda simbólica de um objeto imaginário” (Dor, 1990).

Então, pode-se dizer que o Pai na constituição do desejo inscreve o falo no campo do Outro, dando um basta ao incestuoso, ao transbordamento do gozo. Este é o ponto de basta, o falo.

No Seminário Livro III, Lacan toma a aproximação da linguagem ao inconsciente e propõe pensar a linguagem fora da cena da enunciação e a língua como um sistema de signos e articula o falo ao Outro (A), dando à idéia Nome-do-Pai, a função de ponto de basta. O Nome-do-Pai não indica apenas a morte da coisa, mas indica a morte de toda significação perdida em nome de uma morte anterior. Neste sentido, a finalidade da teoria, Nome-do-Pai, é mostrar a relação da função de ponto de estofo, e o lugar do Outro, e pensar como o sujeito pode articular estas duas funções.

Mas, este processo é passível de falha, na estrutura simbólica, e implica na foraclusão do Nome-do-Pai. Este acidente ressoa sobre a estrutura imaginária, dissolvendo-a e conduzindo-a a estrutura elementar, provocando a desestruturação imaginária.


FORACLUSÃO

Para situar a clínica da psicose, é necessário explicitar o conceito fundamental de foraclusão , cuja origem psicanalítica remete a Verwerfung freudiana, de onde Lacan imprimiu o seu sentido, tornando-a, dentro da teoria lacaniana, o conceito operatório da psicose.

Recentemente, Solal Rabinovich (2001), empreendeu uma importante pesquisa em torno deste conceito:

“Assim foracluir consiste em expulsar alguém ou alguma coisa para fora dos limites de um reino, de um indivíduo, ou de um princípio abstrato tal como a vida ou a liberdade; foracluir implica também o lugar, qualquer que ele seja, do qual se é expulso, seja fechado para todo o sempre ... Foracluir consiste pois, afinal, em expulsar alguém para fora das leis da linguagem”. (Rabinovich 2001)

É com a conotação do sem lugar, do sem destino, do errante, que o termo entrou para a psicanálise, para designar o lugar dos loucos, dos verdadeiros presos do lado de fora, para aqueles que não encontram o seu lugar no inconsciente.

A foraclusão indica o tipo de negação envolvida no recalcamento: Verwerfung, cuja conseqüência para o sujeito é o retorno no real, já que a negação se deu pela via do simbólico.

A escolha de Lacan, para traduzir a Verwerfung freudiana por foraclusão, tem a ver com a diferença que este termo poderia marcar em relação aos outros mecanismos de defesa, o recalcamento, a renegação e a denegação, distinguindo-a da expulsão. A foraclusão está diretamente ligada à estrutura do sujeito, intervindo na sua constituição primitiva, e delineando a maneira pela qual o sujeito nela se posiciona. Cada um destes mecanismos, dentro de sua especificidade, altera o saber inconsciente. Tratando-se da neurose, o que está em jogo é o recalcamento (Verdrängung), cujo retorno se constitui num sintoma; já, no caso do desmentido ou da recusa (Verleugnung), estratégia do sujeito da perversão, o retorno é o fetiche; e o mecanismo de defesa da psicose é a foraclusão (Verwerfung), tendo a alucinação como aquilo que retorna.

Para Lacan, todos os três mecanismos são operações psíquicas, ou estratégias do sujeito de negar a falta no Outro. Rabinovich (2001), considera que no caso da foraclusão, a perda do sujeito é tão fundamental, que chega a negativar todo o funcionamento da linguagem, e se constitui mais um acidente mortal, do que, propriamente, uma estratégia do sujeito, salvo se este tende, desesperadamente a preencher a perda que o constituiu.

Lacan incluiu, no inconsciente, a dimensão temporal: antecipação do imaginário, sincronia significante e caráter atual do real. Nesta medida, foi possível correlacionar às coordenadas do retorno ao lugar, tempo e modo como retornam .

O real é o lugar da lacuna, da não existência, do irrepresentável. É um lugar esvaziado de representações. É a Lücke freudiana, produzida pelo tecido psíquico, é o vácuo deixado pela abolição de um significante. Se o retorno do foracluido se dá nesse vazio, ele não tem como se escrever e não cessa de reaparecer, como voz, ou no que se vê.

Na neurose, quando o saber recusado retorna como sintoma, é porque a verdade do sujeito pode ser sabida ali, por ser reconhecida pelo Outro, pode ser articulada como saber. Na psicose, um excesso de gozo esvazia o lugar do Outro, e ao sujeito não lhe resta outra alternativa senão articular-se ao Outro do corpo, como lugar de gozo.

Quando o processo de metaforização não ocorre, a falta do Nome-do-Pai, inscrita no significante, abre no significado um furo, um cavo, que tomará o lugar da significação fálica. O que não entra no simbólico retorna no real, seria o Outro, não articulado no basteamento. A psicose é a desorganização da não dissidência do

Nome-do-Pai, é o lançamento do sujeito numa espécie de sentido, significação endereçada ao próprio sujeito, que retorna, mas não de uma forma invertida.
Com a foraclusão do Nome-do-Pai, estamos diante de uma dupla falta. Primeiro a de um significante, o Nome-do-Pai, que marca e institui, simbolicamente, este lugar; e a do próprio lugar, enquanto lugar vazio, faltante, pela ausência de significante. Este lugar vazio pode vir a ser ocupado, ou não, em um outro dos registros onde ele é levado a funcionar. Quando não há foraclusão, o que deveria ser a parte simbólica do Pai, vai deixar em seu lugar a parte real. O que acontece se o sujeito encontrar o pai real, quando o lugar está marcado pela ausência de significante? Ele produzirá na cadeia uma alteração delirante, no lugar de nenhuma resposta possível de sua parte.

É porque falta este lugar, que tudo não pode ser dito, esta é a incompletude do Outro, o sujeito, entra para a linguagem, pelo fato de que é impossível dizer tudo. O sujeito da psicose, também está na linguagem, mas não pode usá-la, como o neurótico, porque falta o lugar vazio ordenador. Porque o primeiro significante foi abolido todos os outros não representam mais nada.

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A FANTASIA ENCARNADA: um estudo sobre o fenômeno psicossomático.

A FANTASIA ENCARNADA: um estudo sobre o fenômeno psicossomático. Heloísa Helena Aragão e Ramirez & Christian Ingo Lenz Dunker. UNIMARCO/UNIFESP (Dra. Valéria Petri). São Paulo. Brasil.

“É sempre no encontro com a palavra que o homem pensa. E é no encontro dessas palavras com o seu corpo que alguma coisa se esboça”.
Lacan, J. 1975.

Este trabalho é resultado dos primeiros atendimentos aos pacientes com vitiligo , no Instituto da Pele em São Paulo, a partir da implantação do Projeto “Aspectos Psicológicos do paciente com vitiligo e psoríase” cuja formatação prevê a elaboração de consultas compartilhadas e entrevistas para avaliação clínica das situações individuais do paciente. Como resultado inicial desse procedimento, obtivemos uma série de dados interessantes, até mesmo os quantitativos, que nos aproximou de alguns aspectos dinâmicos da doença, como por exemplo: dos 65 pacientes que passaram pelas primeiras entrevistas, em 46% deles o vitiligo desencadeou-se na idade entre zero e dez anos, ou seja, aproximadamente 30 eram crianças quando apareceram as primeiras manchas de vitiligo; outros 18 eram adolescentes com idades entre 11 e 20 anos (27%). Somando-se os dois índices temos que em 64% da população atendida em 2004 pela equipe de psicólogos no Instituto da Pele, o vitiligo se manifestou antes dos 20 anos de idade, um número significativo, que surpreendeu num primeiro instante, mas que foi de encontro aos indicados nos compêndios da literatura médica.

Outra constante clínica que apareceu durante as entrevistas realizadas refere-se às condições atuantes no desencadeamento da doença que nos mostrou uma afinidade direta com perdas ou cortes. Estas situações  que comumente se referiam à morte de alguém muito próximo afetivamente; ou a uma perda financeira; ou a uma mudança inevitável de hábitos culturais, como a migração de um estado para outro; ou ainda a algum episódio de traição, entre outros  eram tidas como traumática pelo paciente, que as relatavam como uma espécie de causa emocional diretamente associada ao desencadeamento do vitiligo. Neste ponto, há que se considerar a observação de Jean Guir sobre os fenômenos psicossomáticos no que diz respeito ao surgimento, mobilizações e desaparecimento destes em função de um acontecimento exato e datas específicas, sendo capazes de uma indução ou causalidade significante. Esses doentes referem-se a si próprios, com muita freqüência, como pessoas nervosas, ansiosas ou ainda estressadas, que diante de um acontecimento inesperado não sabem como lidar com os seus sentimentos.

Também foi possível estabelecer várias aproximações entre o que é próprio do vitiligo e comum ao que aparece no fenômeno psicossomático, como por exemplo, o movimento de alternância entre o aparecimento e o desaparecimento da lesão, diante daquilo que os pacientes costumam se referir como o “abrir e fechar” do vitiligo, como se fosse um surto evolutivo da doença. Além disso, constatamos que algumas pessoas readquirem naturalmente a capacidade de re-pigmentar a pele e as manchas brancas desaparecem, e outras, ao contrário, nunca retomam essa capacidade, e parece que não há para isso, do ponto de vista médico, qualquer explicação científica.

Outro aspecto que vale a pena mencionar é que nos deparamos com pacientes crentes e outros absolutamente céticos em relação ao tratamento e à estabilidade da doença. Alguns só buscaram tratamento 15, 20 e até 30 anos depois do início da enfermidade porque ouviram dizer que o vitiligo não tem cura. Outros, ao contrário, além da medicina recorrem a toda sorte de práticas alternativas, na esperança de se livrarem das incômodas manchas que assolam o seu corpo.
Um dos princípios norteadores da psicanálise é de que o corpo humano é sensível ao dizer, e com isso carrega consigo uma imensa capacidade subjetiva e que por ser subjetiva implica o Outro (do desejo). É esta ligação que permite que se estabeleça uma relação entre aquilo que acomete o corpo e a subjetividade, por isso, o sintoma neurótico é sensível à palavra e pode ser remetido pela interpretação em análise. Isto é diferente do fenômeno psicossomático que implica em uma lesão, e, se ela for reversível isto não se dá instantaneamente já que se trata de algo que está encarnado e concerne ao real.

O caso clínico da jovem Cristiane, marcada na pele pelo vitiligo, foi sem dúvida importante para pensar a lesão como pertencendo à ordem de fenômeno psicossomático, ao levar-se em conta o dano histológico do órgão, no entanto, as discussões realizadas nesse primeiro tempo do Projeto foram promissoras quando se analisou que nem todo vitiligo se apresentava, subjetivamente falando, como um fenômeno psicossomático. Vale ressaltar que se trata aqui de clínica e de psicanálise, portanto, do singular de cada caso. O que insiste para além do sujeito, no particular do vitiligo se apresenta pela via do sintoma ou do fenômeno psicossomático.


Caso clínico

Cristiane, 15 anos, acompanhada de sua mãe, chegou ao ambulatório do Hospital para iniciar o tratamento de um vitiligo segmentar - que se caracteriza pela disposição topográfica das lesões em um só lado do corpo – e que, no seu caso, tomava praticamente metade de seu rosto e pescoço seguindo seu curso da áxila até os artelhos, unicamente do lado direito do corpo. A doença teve início aos dois anos e meio de idade e nenhum tratamento anterior trouxe resultados relevantes. Sobre o tratamento médico do vitiligo sabe-se que existem diversas formas de cuidados mais ou menos demorados, que levam, por vezes, a excelentes resultados. Além disto, como a doença se apresenta de forma e intensidade variada, cada paciente deve receber orientação individualizada, de acordo com seu caso. Assinala-se, ainda, que o êxito ou não dos resultados dependem, muito, da adesão do paciente ao tratamento e da sua relação com o mesmo. Sobre o histórico da paciente, sua mãe explicou que as primeiras manchas apareceram seis meses após sua separação do marido e indicou este fato como o acontecimento causa do desencadeamento do vitiligo e como uma explicação psíquica natural para a doença.

Durante as entrevistas preliminares, Cristiane preferiu responder as perguntas que lhe foram dirigidas sem grande implicação ou interesse, falando muito pouco sobre ela mesma. Abro aqui um parêntesis para dizer da grande dificuldade que os pacientes tidos como psicossomáticos têm para estabelecer a transferência em análise. No caso de Cristiane não foi diferente. Dizia que só estava fazendo terapia e o tratamento médico para satisfazer a vontade de sua mãe, já se acostumara ao vitiligo. Somente com o tempo e muito devagar é que foi possível iniciar-se uma tímida construção de sua história, viés pelo qual a analista apostou poder começar a encetar o laço transferencial.

Cristiane morava com a mãe e o padrasto desde os quatro anos de idade e o considerava seu verdadeiro pai , a ponto de acreditar que ele tinha por ela uma consideração especial tal qual uma filha predileta. Este homem, casado com sua mãe, teve com ela um filho, menino, que na época contava seis anos de idade, e que ela se referia como sendo seu meio irmão. Havia também uma meia irmã, filha mais velha de sua mãe, com outro parceiro. Cristiane, na linhagem materna, é a filha do meio. Considera-se a mais querida, está sempre ao lado da mãe e respondendo à sua demanda como uma boa filha, procurando fazer tudo o que ela lhe pedia prontamente e sem reclamações. A relação com o pai sempre foi muito complicada. Disse-me que dele pouco sabia, mas que também não queria saber mais. Sabia apenas que ele lhe devia muitos meses de pensão e que por isso estava proibido de sair do Brasil, mesmo assim ele fugido para a Ásia usando uma identidade falsa. Antes, porém, aqui mesmo no Brasil ele teve mais dois filhos com outra mulher, uma menina e um menino, que também são considerados seus meios irmãos. Deste pai, quer queira quer não, Cristiane carrega um legado bastante visível que é seu tipo físico: o olho oblíquo, os cabelos lisos e pretos e a estatura elevada. Herança genética que marca sua metade oriental.

A possibilidade de construção de sua história permitiu que Cristiane se recordasse de duas cenas de quando ainda era bem pequena. A primeira foi uma briga que aconteceu quando os três juntos, ela o pai e a mãe foram conhecer o apartamento novo que ele havia comprado para que os três morassem juntos. Cristiane brincava na sala vazia, correndo de um para outro lado enquanto os dois, no quarto, tiveram uma briga horrível. O motivo da briga ela nunca soube, apenas que depois disto seus pais nunca mais se entenderam e a separação foi inevitável e definitiva. Interessante notar que sobre esta cena contada na experiência analítica pairou uma dúvida, Cristiane não conseguia saber se aquilo que lhe vinha à lembrança fora, simplesmente, um sonho ou, de fato, um acontecimento. Precisou convocar à mãe e por à prova a verdade. Saber que de fato tudo acontecera a tranqüilizou.

Cristiane contou que a mãe só se separou do seu pai porque ele era muito ignorante cuja tradução é estúpido, agressivo. A segunda lembrança que ela tem, também do pai, foi a de uma visita que ele lhe fez em cuja ocasião ele lhe presenteou com um ursinho de pelúcia. Uma cena de afeto que, no entanto, ela teima em derrogar dizendo à analista que enquanto o pai tinha a esperança de se reconciliar com a mãe ele a visitava e lhe levava presente, mas quando percebeu que ela não queria mais nada com ele, nunca mais apareceu. Um parêntesis: Sua mãe contou à analista que Cristiane nunca gostou de estar com o pai, desde muito pequena, quando ele a pegava no colo ela o rechaçava, afastando-o com as mãos e chorando. Acredita que a filha não poderia saber por que era pequena, mas que ela devia sentir o quanto o pai era ignorante.

Sobre o vitiligo, nenhuma palavra, Cristiane dizia que ele não a incomodava, já estava acostumada, só se magoava e chorava quando era alvo de apelidos, como na escola quando os garotos a chamavam de traquinas meio-a-meio, cara-metade ou manchada. Os seus apelidos, conseqüência de sua doença, foram explicados pela característica das cores e traquinas meio-a-meio como a bolacha: uma carinha marrom e creme. Ela sabia que os meninos quando se reuniam olhavam-na, rindo e falando dela e refere-se a eles dizendo que tem muitos garotos ignorantes na escola. Ignorantes como o seu pai?

Foi na série: meio-oriental-meio-ocidental (traços do pai e traços da mãe); cara-metade; filha-do-meio; meio-irmã; e traquinas-meio-a-meio, que a analista se deteve na expectativa encontrar o traço de fixação do fenômeno psicossomático em meio-corpo (vitiligo segmentar). Meio-a-meio tinha característica de um significante encarnado pela fixidez imaginária, num gozar fora do corpo e que tomava a forma de um vitiligo. Havia também o fato de que algumas destas expressões: traquinas meio-a-meio; cara-metade ou manchada possuir um estatuto lingüístico comum: eram formas do nome, alcunhas, substituições ao nome próprio do sujeito. Formas de nomeação que corrompem a qualidade essencial do nome próprio, ou seja, a de designar sem significar e estão, portanto, sujeitas ao processo de tradução e sinonímia. Mais do que isso, tem a função de representar no enunciado o destinatário de uma enunciação, um shifter ao qual o sujeito está submetido a partir da interpelação do Outro. Segundo Guir, “parece que há no fenômeno psicossomático uma degradação, uma dessacralização, um rebaixamento do nome próprio a uma leitura comum que desmascara o sujeito” .

Poder-se-ia argumentar aqui que a nomeação em questão (meio-a-meio) é secundária ao próprio vitiligo e que se deveria procurar por algo similar na esfera da própria constituição da formação psicossomática, diferenciando-o dos seus efeitos sobre o narcisismo. Conforme Lacan a letra inscreve um gozo específico que não se dá a ler, assim, “a lesão psicossomática é a letra marcando-se no organismo”, e que se explica por ser uma posição do sujeito ao Outro que não se decifra, diferentemente do sintoma analítico. Guir, 1990, nos apresenta o paciente psicossomático como buscando traços de identificação com o pai, uma vez que ele tem dificuldade de acesso ao traço-Unário. Nesta medida, a lesão psicossomática funciona como este traço, como um “significante, não de uma presença, mas de uma ausência apagada” , uma marca que passa necessariamente pelo ponto de apagamento, marcando a diferença, onde “o corpo se deixa escrever alguma coisa que é da ordem do número” , uma vez que o que falha é justamente a função de pai, ou seja, a função de zero, por onde se introduz a via pela qual o sujeito passa a se contar, inaugurando assim sua unicidade significante.

A gente sabe quando estão falando da gente esta oração, pinçada do discurso de Cristiane exemplifica a forma como ela se coloca no discurso. Gente, ao mesmo tempo em que inclui, pode também excluir o sujeito, tornando-o evanescente. Ainda: no começo levava presentes ou tinha comprado um apartamento pros três morar, percebe-se aí um problema na localização subjetiva desta paciente, onde o sujeito não aparece e encontra-se eclipsado, principalmente quando o discurso se refere ao pai.

Retomando a teoria, na fundamentação do fenômeno psicossomático é que ocorre uma incidência do significante sobre o corpo em virtude de um fracasso da função do Nome-do-Pai, um holofraseamento, permitindo que se estruture alguma coisa que é da ordem da letra. S1 cola em S2, sem o intervalo que possibilita a divisão do sujeito. Como não existe intervalo, não existe também objeto perdido, estilhaços pulsionais. O sujeito é compactado ao objeto. É como se todo o narcisismo se concentrasse nessa “marca que é antes de tudo uma assinatura”. Isto não significa que o sujeito não seja representado por um significante, o que ocorre no fenômeno psicossomático é que o sujeito é representado por um significante, mas não para outro significante. Além disso, Lacan fala em auto-erotismo sem relação de objeto, e precisa, “que a indução significante, no nível do sujeito se passa de um modo que não coloca em jogo a afânise”, referindo-se a uma espécie de bloqueio, “de congelamento do significante no corpo, um curto circuito que será responsável pelas manifestações corporais”.

Não existe sujeito psicossomático, isto quer dizer que não há estrutura psicossomática como não há privilégio de uma ou outra estrutura quando se trata de fenômeno psicossomático ele está ao lado da estrutura, ou seja, pode comparecer tanto na neurose, quanto na psicose quanto na perversão. O holofraseamento de que se trata aqui não tem a mesma configuração daquele da psicose em que o sujeito não pode responder ao retorno no Real de um significante foracluído. Nasio fala em foraclusão parcial, ou melhor, em foraclusão local do Nome-do-Pai e Guir diz que para ele o significante S1 não é nem foracluído, pois não se trata de psicose, e nem recalcado, simplesmente à metáfora não funciona, porque não faz o corte entre S1 e S2 para que haja emergência do objeto a.

Uma alternativa possível para dirigir o tratamento seria transformar aquilo que é fenômeno em sintoma, deslocando o que faz assinatura para o que é da ordem do signo e aí então contar com a possibilidade de poder fazer uma leitura. Neste caso, o que permitiu Cristiane deslocar aquilo que era da ordem do gozo no corpo para a palavra foi à insistência da analista em separar traquinas-meio-a-meio, o quê deu ocasião para pontuações que se abriram para as questões sexuais (via possível para o descongelamento do significante compactado). Ao associar traquinas-meio-a-meio, agora, a uma bolacha de dois sabores, chocolate e creme, Cristiane passa da cor ao sabor, fazendo emergir fantasias que não pertenciam mais unicamente ao corpo, mas ao próprio sujeito. Traquinas, traquinagem, brincadeiras safadas, acontecidas no camarim do teatro da escola, onde os meninos, ignorantes, pediam para que as meninas ficassem de quatro para que esfregassem o pau na vulva delas. Traquinagens das quais Cristiane não participava diretamente, mas olhava, ao mesmo tempo em que servia de guarda para que os colegas não fossem pegos na suas safadezas. Ela via, mas não fazia, satisfazia-se com o olhar. Ao colocar traquinas como um elemento significante da cadeia discursiva Cristiane faz uma retroação significante, ela retira o gozo do corpo e passa para o sexual, abrindo espaço para o campo do desejo. Ao passar de traquinas para traquinagem, num deslizamento metonímico, constata-se a existência da rede simbólica, uma prova contundente da existência do sintoma analítico numa estrutura neurótica, emergindo aí várias questões do campo do desejo. Ainda mais, foi a partir destas pontuações que Cristiane se permitiu jogar o jogo da sexuação, fazendo aquilo que é próprio da adolescência, investigar a sexualidade e o fez pelo viés da feminilidade.

Cristiane, até então, uma garota triste e calada passou a se relacionar com outros adolescentes de sua idade, a sair para passear, ir ao cinema e, principalmente, começou a se importar com sua aparência cuidando de seus cabelos e de suas roupas e a se questionar sobre a falta. É neste momento que o vitiligo entra na história com outro estatuto. No sintoma histérico o sujeito encontra recursos para lidar com a angústia, inversamente ao fenômeno psicossomático, onde o sujeito não demanda e também não tem expediente para driblar o gozo. Por isso, é função do analista oferecer significantes para provocar a demanda. Acredito que a insistência da analista em escutar e apontar os significantes foi o que possibilitou o início da transferência, estabelecida, não à priori, mas, no próprio dispositivo analítico cujo movimento esteve a mercê do tempo. Acho que posso apontar como marco para o início da transferência o momento em que Cristiane passou a se interessar por seu drama pessoal e foi em busca de um saber sobre sua verdade para entregá-la à analista, na suposição de que isso ajudaria na decifração de seu sintoma.

Portanto, a possibilidade do deslocamento, no caso de Cristiane, do gozo no corpo para a palavra foi um giro clínico, cujo ganho analítico teve o valor de uma retificação subjetiva.

É importante salientar que o corte introduzido entre traquinas meio-a-meio como forma de nomeação e como deslocamento significante, segundo nossa hipótese, não extrai seus efeitos pela indução da significação sexual e pela refração da alienação imaginária que ele sustentava, mas pela transformação da função de nomeação em função de significante que representa o sujeito.